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    A fúria silenciosa de “Ataque dos Cães” rumo à consagração no Oscar

    Filme de faroeste aborda a homossexualidade no interior conservador dos Estados Unidos e contradiz os clichês do gênero

    Pablo Miyazawacolaboração para a CNN

    A pouco mais de dois meses da cerimônia do Oscar 2022, Ataque dos Cães (The Power of the Dog) desponta como um favorito improvável na disputa pelos prêmios principais.

    “Improvável” não por ser um filme de faroeste dirigido por uma mulher (a premiada Jane Campion) ou por ter sido lançado primordialmente em uma plataforma de streaming (a Netflix), mas por abordar um assunto ainda tabu dentro do gênero: a homossexualidade no interior conservador dos Estados Unidos.

    A trama se passa em 1925 e é centrada na figura do caubói rústico Phil (Benedict Cumberbatch) e sua relação tensa e tortuosa com a cunhada, Rose (Kirsten Dunst), e o filho adolescente dela, Peter (Kodi Smit-McPhee).

    O que parece ser uma típica relação de bullying entre o agressivo Phil e o delicado Peter vai se tornando um lento jogo de sedução mútua, com poucas palavras e insinuações nada discretas.

     

    A sexualidade dos protagonistas é oferecida como isca para o público, que pensa presenciar a construção de um relacionamento homoafetivo entre tio e sobrinho. Entrando levemente no terreno dos spoilers, no fim das contas, descobre-se que o filme não é (apenas) sobre isso.

    Com roteiro escrito pela própria Jane Campion (adaptado do livro do autor norte-americano Thomas Savage), “Ataque dos Cães” foi filmado na terra natal da diretora, a Nova Zelândia, que simula os cenários bucólicos do estado de Montana, palco da história original.

    Repleto de paisagens exuberantes e energizado por ótimas performances (Jesse Plemons completa o elenco principal como George, o pacato irmão de Phil), o filme também se apoia em longas sequências silenciosas e no foco em detalhes aparentemente insignificantes, exigindo a atenção redobrada do público, ou uma segunda conferida, para ser compreendido.

    Trata-se de um raro faroeste sem armas ou violência (ainda que a castração de um boi seja mostrada em detalhes), empenhado em contradizer os clichês do gênero – principalmente no que diz respeito aos comportamentos dos personagens masculinos.

    ”De um modo geral, o faroeste tradicional ajudou a construir um tipo de masculinidade dura, que os homens assumiram para si como desejável”, explica Guacira Lopes Louro, doutora em educação e autora de “Flor de Açafrão” (Ed. Autêntica), em que disseca a questão da sexualidade em obras culturais. “Nesses filmes, o homem podia ter uma ligação de amizade e lealdade muito forte com outros homens, mas sem resvalar para uma ligação amorosa.”

    “A sexualidade é uma questão central importantíssima que atravessa a história, mas o filme é mais do que isso” / Kirsty Griffin/Netflix

    Já em “Ataque dos Cães”, ”há muitas leituras e camadas”, Guacira acrescenta. “A sexualidade é uma questão central importantíssima que atravessa a história, mas o filme é mais do que isso. Eu não diria que é um mero ‘Faroeste gay’. O que importa aqui é a tensão na questão das sexualidades e mostrar o oposto do que se espera do comportamento masculino naquele espaço.”

    “Dentro de uma perspectiva mais clássica do faroeste, ‘Ataque dos Cães’ quebra as expectativas”, concorda Cyntia Calhado, crítica e professora do curso de Cinema e Audiovisual da ESPM-SP. “Mas o filme está conectado ao processo de desconstrução que todos os gêneros cinematográficos estão passando atualmente.”

    Para Bruno Carmelo, crítico e editor do site Papo de Cinema, o mérito de Ataque dos Cães está justamente na ousadia com que quebra os padrões estabelecidos. ”O filme brinca com nossos preconceitos e pressupostos de uma sociedade que é heteronormativa e patriarcal, e de que todo homem é heterossexual até que se prove o contrário”, ele diz.

    “É um filme sobre homossexualidade que parte de um Salmo bíblico. Só isso já é uma grande provocação.”

    Ataque dos Cães X Brokeback Mountain

    O conflito e a contradição também fizeram parte da vida de Thomas Savage, um escritor de sucesso modesto que se especializou na temática Western, em histórias carregadas de descrições apuradas da vida no campo, personagens machos em conflito e toques autobiográficos subliminares.

    Apesar de casado com uma mulher (a também escritora Elizabeth Fitzgerald), ele manteve diversos relacionamentos extraconjugais com homens e jamais se assumiu gay publicamente, até sua morte, em 2003.

    Lançado em 1967, o livro “Ataque dos Cães” foi o trabalho de Savage mais aclamado pela crítica, mas teve vida curta e caiu no esquecimento até ser relançado em 2001. O posfácio desta edição ficou a cargo de Annie Proulx, mais conhecida por ser a autora do conto “Brokeback Mountain” (1997), que inspirou o filme “O Segredo de Brokeback Mountain” (2005) – por sua vez, também uma história sobre o relacionamento amoroso entre dois caubóis.

    Em “Brokeback Mountain”, o tema era o amor romântico entre dois homens que não podem estar juntos/ Divulgação

    Curiosamente, Annie Proulx não conhecia a obra de Thomas Savage quando escreveu “Brokeback Mountain”. No posfácio, ela conta que foi o próprio escritor quem a procurou para dizer que havia lido seu conto e apreciado, além de enviar a ela um exemplar de “Ataque dos Cães”.

    Apesar de manterem contato por alguns anos, os dois nunca se encontraram pessoalmente. Apenas confirmando o que parece ser uma conexão orgânica entre as sagas, a diretora Jane Campion fez questão de consultar Annie Proulx durante a criação do roteiro de “Ataque dos Cães”.

    A verdade é que, apesar das semelhanças temáticas, “Brokeback Mountain” e “Ataque dos Cães” não poderiam ser mais opostos em suas formas de abordagem. “São dois filmes de Western que têm homens e homossexualidade no meio, mas a maneira como isso é tratado é radicalmente diferente”, opina Bruno Carmelo.

    “Em ‘Brokeback Mountain’, o tema era o amor romântico entre dois homens que não podem estar juntos, mas como história, é um filme clássico, baseado na catarse. Já ‘Ataque dos Cães’ é sobre a masculinidade e virilidade, e a aceitação desses personagens com eles mesmos. É um filme de desamor. Em termos psicológicos, é muito mais sofisticado.”

    “A proposta de ambos é desconstruir o ideal de masculinidade propagado pelo faroeste clássico e questionar o patriarcado como um valor que sustenta esse gênero”, acrescenta Cyntia Calhado.

    ‘Brokeback Mountain’ era explicitamente contundente em seu foco na relação homossexual entre dois caubóis. ‘Ataque dos Cães’, por conta das características autorais da Jane Campion, é um filme de mais sutilezas.

    Cyntia Calhado, crítica e professora de cinema

    Guacira Lopes Louro concorda: “’Brokeback Mountain’ foi uma ruptura que chocou ao mostrar que a amizade entre os homens podia também ser amorosa. Já em ‘Ataque dos Cães’, a sexualidade está reprimida, mas também é um elemento muito intenso”.

    Chances no Oscar?

    A vitória recente no prêmio Globo de Ouro na categoria Melhor Filme Dramático não necessariamente garante que “Ataque dos Cães” terá a mesma sorte no mais badalado Oscar, cuja cerimônia está prevista para 27 de março.

    Existe o tabu de que, apesar de frequentemente indicados, os filmes produzidos pela Netflix raramente vencem nas categorias principais da premiação. Além disso, o lançamento priorizado em um serviço de streaming e limitado a poucas salas de cinemas torna difícil mensurar o tamanho da audiência do filme e sua real popularidade.

    Porém, os resultados recentes indicam que os membros da Academia têm repensado os critérios para escolher seus vencedores. ”É cada vez mais difícil saber o que é um filme ‘que ganha Oscar’. Antigamente era muito claro, tinha de ser uma superprodução com grandes orçamentos. Mas [os vencedores dos últimos dois anos] ‘Parasita’ e ‘Nomadland’ não são isso”, diz Bruno Carmelo. “‘Ataque dos Cães’ vai ser indicado e pode vir a ganhar, mas não é o que podemos considerar um ‘filme popular’.”

    “Faroeste é um gênero de difícil entrada, porque é mais contemplativo, a ação é mais lenta. E mesmo com atores famosos, tem muito cara de ‘filme de arte’”, pondera Cyntia Calhado. Assim mesmo, ela aposta em Ataque dos Cães como vitorioso no prêmio principal, “justamente por ser uma abordagem diferente para um gênero clássico, assim como um frescor para a Academia que está sendo buscado há anos”.

    Além do provável prêmio de Melhor Ator Coadjuvante para Kodi Smit-McPhee, os prognósticos também estão favoráveis para Jane Campion, o que faria dela a terceira mulher na história a ganhar na categoria Melhor Direção (em 1993, ela recebeu o Oscar de Melhor Roteiro Original por “O Piano”).

    “O que seria justíssimo, porque estamos nessa onda de premiar mais as mulheres cineastas”, finaliza Cyntia. “Este filme traz uma mudança de olhar em relação ao patriarcado e à masculinidade. Então, nada mais justo do que uma mulher que tenha esse olhar ser premiada.”

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