A cruzada de Neil Young contra o Spotify não é novidade para o músico
O cantor e compositor canadense tem uma longa tradição de enfrentar os poderosos - e conseguir fazer sua mensagem reverberar
À luz dos recentes fatos, o cantor, compositor e guitarrista canadense Neil Young pode ser visto como um veterano lutando contra um gigante da tecnologia, uma versão musical de Urtigão, personagem da Disney criado nos anos 1960, que tenta afugentar seus inimigos – qualquer pessoa que tente entrar em contato com ele – dando tiros para cima.
Mas o velho Young é um franco-atirador de longa data, sempre a favor dos oprimidos, sempre mirando contra os grandes, cientes de seu poder de fogo. O tiro mais recente não foi para cima e tinha um alvo preciso: o gigante do streaming de música Spotify.
Mesmo há muito tempo alvo de críticas pelo valor do repasse aos artistas incluídos na plataforma, o Spotify se estabeleceu como principal aplicativo de streaming de música do mundo, atingindo um público de centenas de milhões de pessoas – só de assinantes que pagam pelo serviço, há mais de 170 milhões e outros tantos que o utilizam em sua versão gratuita com comerciais empurrados ouvido abaixo.
Mas há tempos que a plataforma passou a priorizar os podcasts em detrimento da música – afinal, o serviço não precisa pagar pelos direitos autorais de um programa falado da mesma forma que teria que pagar pela música.
Estabelecendo contratos de exclusividade no mundo todo, um dos principais podcasts do serviço, que pagou 100 milhões de dólares pelo seu passe, é do apresentador Joe Rogan, que destila diferentes tipos de preconceito para ter diferentes pontos de vista, dando espaço para versões racistas, misóginas e homofóbicas. E ultimamente, usando a mesma desculpa, entrevistou médicos para questionar a eficácia das vacinas.
Foi a gota d’água para Young, que teve poliomielite quando tinha cinco anos de idade e foi salvo devido à eficácia de uma vacina. O músico deu um ultimato à plataforma, que teria de escolher entre Rogan ou ele. Como o podcaster seguiu no ar, Young tirou todo seu catálogo do aplicativo, fazendo que outros músicos – como Joni Mitchell (que também teve pólio quando era criança), Peter Frampton e os ex-companheiros de Young, David Crosby, Stephen Stills e Graham Nash, entre outros – também retirassem sua música do aplicativo e impulsionando uma enorme onda popular de ouvintes cancelando assinaturas e desinstalando o aplicativo de seus smartphones.
Nascido em Toronto e criado primeiro em uma área rural (onde pegou pólio) e em Winnipeg, no Canadá, Young mudou-se para os Estados Unidos em 1966, onde formou o Buffalo Springfield, em Los Angeles, uma das principais bandas da cena folk da região.
Depois de uma breve passagem pelo grupo Crosby Stills Nash & Young (que seguiu carreira sem o canadense), ele saiu em uma carreira solo que sempre equilibrava-se entre a tradição da canção popular norte-americana e os limites da exploração sônica, flertando tanto com a microfonia e o rock pesado quanto com a eletrônica mais experimental.
Neste percurso, muitas vezes acompanhado por sua clássica banda de apoio, o Crazy Horse, compôs um rosário de canções imortais e discos que estão nos pilares da história do rock, como “Everybody Knows This Is Nowhere” (1969), “After the Gold Rush” (1970), “Freedom” (1989), “Harvest Moon” (1992) e uma que lista segue até hoje.
Em paralelo a isso, Young sempre foi um ativista e a cruzada contra o Spotify é só mais um capítulo em sua biografia. Toda sua carreira é marcada pelo ativismo político e em busca de alternativas para o que ele considerava falho.
Além de ter sido um dos mais ferrenhos opositores dos governos de Bush pai (em quem ele mirava ao compor o hit “Rockin’ in the Free World”) e Bush filho (para quem compôs “Let’s Impeach the President”) na presidência dos EUA, no início do século, ele também investiu em empresas como a LincVolt (que fazia carros com motores híbridos, para evitar os combustíveis fósseis) e até no Pono, seu próprio tocador de MP3, que rivalizava com o iPod da Apple que ele dizia ter uma qualidade de som inferior.
A questão ambiental também é um assunto recorrente para Neil Young, que inclusive veio ao Brasil em um festival apenas para dar uma palestra sobre o assunto, em vez de fazer shows, tema de discos como “Greendale” (2003), “Living with War” (2006) e “Chrome Dreams II” (2007).
Young também criou o festival beneficente Bridge School Benefit, para arrecadar fundos para a escola de mesmo nome, que fica em Mountain View, na Califórnia, e ajuda crianças com dificuldades motoras. O evento aconteceu entre 1986 e 2016 e reuniu artistas de peso para fazer shows intimistas, sempre no anfiteatro da escola.
Ao lado de John Mellencamp e Willie Nelson, ele criou o Farm Aid, em 1985. O festival tinha como objetivo ajudar a vida dos pequenos fazendeiros norte-americanos e segue sendo realizado anualmente até hoje.
Não bastasse sua contribuição musical, Young também mexe com questões sociais e políticas e por mais que pareça valente ao encarar gigantes de frente, sempre contou com a ajuda de amigos e fãs para que sua mensagem reverberasse.
E ela tem reverberado: ao mesmo tempo em que Joe Rogan publicou um vídeo de dez minutos explicando seu ponto de vista – em que também saudava a importância de Neil Young -, o CEO do Spotify, Daniel Ek, disse que o podcast de Rogan era crucial para que a empresa batesse suas metas, numa clara demonstração de que por menor que pareça ter sido o cutucão dado por Young, ele foi sentido.