A batida perfeita de Charlie Watts
O homem que manteve o ritmo dos Rolling Stones por quase seis décadas deixou um legado que jamais vai desaparecer
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Não foi apenas o mundo da música que lamentou a morte de Charlie Watts, eterno baterista dos Rolling Stones, nesta terça-feira (24). A partida repentina do músico veterano, aos 80 anos, parece esfregar na cara de todo mundo o recado incômodo de que o tempo não estará sempre do nosso lado — por mais que a antiga canção nos afirme o contrário.
Mick Jagger e Keith Richards sempre serão “os Stones” que todos reconhecem, mas neste momento é difícil imaginar a banda quase sexagenária persistindo sem a presença inabalável de Charlie Watts.
Todos pensam que Mick e Keith são os Rolling Stones. Mas se Charlie não estivesse fazendo o que faz na bateria, isso não seria verdade. Você descobriria que Charlie Watts é o Stones
Keith Richards, em uma entrevista em 1979
Tamanha importância pode ser compreendida em números absolutos. Em quase dois mil shows como o coração pulsante dos Rolling Stones, Charlie Watts jamais faltou com sua parte ou deixou registros de performances comprometidas por sua atuação. Seu trabalho marcante na sessão rítmica pode ser ouvido e apreciado em todos os álbuns de estúdio dos Stones desde 1964, um feito que apenas a dupla principal de compositores conseguiu replicar.
Como parte de um grupo liderado por personalidades tão exuberantes e maiores do que a vida, Charlie Watts fez bem em ter optado por se manter longe dos holofotes – não que ele conseguisse fazer diferente. Acostumado à solidão de fundo do palco destinada aos bateristas, na vida privada ele foi igualmente discreto e avesso a badalações. Se chamava a atenção, além do contraste com os parceiros, era pela distinção com que se portava fora de cena e, principalmente, por seu estilo monolítico detrás de seu kit simples de sete peças, comicamente econômico em se tratando de uma superbanda acostumada a tocar para enormes multidões.
A verdade é que Charlie Watts parecia gostar de destoar dos outros Stones, quase como se quisesse ser confundido com um músico convidado. No início, Jagger, Richards e Brian Jones (guitarrista da formação inicial, que morreu em 1969) formavam a linha de frente hardcore que absorveu até a alma a tríade “sexo, drogas e rock’n’ roll” que tornou a banda infamemente famosa. Watts, por sua vez, seguiu na rota oposta. Casou-se com Shirley Shepherd em 1964, que permaneceu sua esposa até o fim, enquanto os companheiros brincavam de colecionar affairs, exageros entorpecentes e manchetes escandalosas.
Nascido em Londres, em 2 de junho de 1941, Charles Robert Watts começou a tocar bateria aos 14 anos, encantado pelos discos de jazz de Charlie Parker, Miles Davis e outros astros da época. Sua entrada nos Stones foi tardia – ele foi o último a embarcar definitivamente no projeto, em janeiro de 1963, enquanto se dividia entre outras bandas de jazz e R&B e trabalhos como artista gráfico em agências de publicidade, que lhe rendiam melhor remuneração do que como músico de bar. Mas tocar era sua paixão, ainda que o plano inicial jamais fosse fazer parte de uma banda viajante. Quando recebeu o convite para se tornar o baterista fixo dos ainda iniciantes The Rolling Stones, Watts não viu grandes motivos para recusar.
“Eu tocava com todo mundo; tocar era o que eu realmente gostava de fazer”, ele declarou no livro “According to the Rolling Stones”, sobre seu início de carreira como baterista pau-para-toda-obra. Verdade seja dita, foi a presença estóica e responsável de Watts que conferiu àquele bando de desajustados um ar de comprometimento que se manteve ao longo das décadas, conferindo aos Rolling Stones o merecido e intocável título de “maior banda de rock do mundo”. Nenhuma outra em atividade pode exigir hoje uma alcunha parecida.
Homem de muitos talentos, Watts também pôs em prática suas habilidades de designer ao elaborar os palcos de diversas turnês, além de criar artes especialmente para encartes dos discos. Em 1964, publicou o livro infantil ilustrado “Ode to a high flying bird”, em homenagem ao saxofonista Charlie “Bird” Parker. Nos raros intervalos entre gravações e longas viagens stonianas, aproveitava para se lançar em projetos paralelos como o Charlie Watts Quintet e a Charlie Watts Orchestra. Frequentemente era lembrado por sua elegância e costumava ser eleito por publicações de moda como um dos homens mais bem vestidos do mundo, algo que não parecia deixá-lo mais vaidoso.
Mas chamar Charlie Watts de “elegante” é dizer pouco sobre seu indefectível estilo na bateria, marcado pela postura ereta, os movimentos contidos e quase relutantes, a mão esquerda segurando a baqueta como se fosse uma colher, à moda dos jazzistas. A percepção errônea de que suas batidas eram pouco elaboradas talvez viesse da imagem que passava ao tocar, raramente alterando a expressão facial ou executando grandes esforços físicos. De fato, tais aspectos apenas confirmam seu domínio na arte de fazer o complicado parecer simples. Formado nas técnicas complexas do jazz, Watts amaciou sua pegada e acelerou o rhythm and blues adorado pelos companheiros de banda, criando uma assinatura única que se tornou uma peça essencial, indissociável dessa engrenagem.
Ainda que os arranjos dos Stones permitissem que seus músicos dessem breves pausas entre acordes e melodias, Watts raramente se permitia parar. Ao vivo, ele era a máquina que mantinha a canção nos eixos e jamais deixava o andamento cair, criando uma cama generosa para a comissão de frente se exibir à vontade. Em uma geração roqueira marcada por vocalistas e guitarristas sempre em destaque, foram poucos os bateristas que tiveram a permissão de brilhar por conta própria. É possível citar Ringo Starr dos Beatles, Keith Moon do The Who, John Bonham do Led Zepellin e Ginger Baker do The Cream, e não muitos outros. No caso do confiável marcador de tempo dos Stones, sua grande qualidade foi jamais precisar mostrar muito para se fazer essencial.
Em retrospecto (e com a emoção permitida pelo momento), ouso afirmar que alguns hinos dos Stones não teriam passado pelo teste do tempo se fossem excluídas as contribuições de seu diligente baterista. Parece impossível separar um clássico como “Paint it Black” de sua levada marcial pesada, ou não se empolgar com o instigante riff de caixa, bumbo e chimbal que abre “Get Off of My Cloud”. E como resistir à levada sôfrega de “(I Can’t Get No) Satisfaction”, que parece não deixar a ânsia por satisfação terminar, mesmo quando voz e instrumentos cessam antes de cada “hey hey hey”? Sem o embalo rítmico tão preciso e marcante gerado por Watts, muitas pérolas dos Stones talvez não carregassem o poder de durar tanto.
Os problemas de saúde não eram exatamente novidade para o Stone mais velho em atividade (da formação original, apenas o baixista Bill Wyman nasceu antes dele). Em 2004, o baterista enfrentou um câncer na garganta que interrompeu seus trabalhos com a banda por alguns meses, até retomar para a gravação do álbum “A Bigger Bang” e sua subsequente turnê de 147 shows. Na época, declarou que “parece que sempre que paramos, eu fico doente. Então talvez eu devesse continuar”. Com 80 anos recém-completos, Watts se preparava para sair em mais uma turnê pelos Estados Unidos, até ser impedido de trabalhar por ordens médicas, mesmo após passar por uma cirurgia bem-sucedida.
Fomos assim criados diante do senso comum de que os Rolling Stones durariam para sempre. A piada recorrente sobre as longevidades de Mick Jagger e Keith Richards apesar dos excessos carrega a esperança inocente de que certos tipos de estrela são capazes de sobreviver a qualquer coisa. Quis o destino que Charlie Watts, o mais centrado de todos, partisse antes de seus parceiros. Conduzidas por suas batidas firmes, grandiosas e eternas, as canções que já adoramos vão nos emocionar mais ainda.