Prime Time

seg - sex

Apresentação

Ao vivo

A seguir

    Após um mês, guerra na Ucrânia faz commodity disparar e é novo golpe à globalização

    Especialistas apontam que alguns efeitos do conflito na economia devem continuar mesmo com o seu fim; entre eles, a internalização de cadeias de produção a fim de reduzir a dependência de outros países

    João Pedro Malardo CNN Brasil Business , em São Paulo

    Completando um mês nesta quinta-feira (24), a guerra entre Ucrânia e Rússia não dá sinais de desfecho, mas, independentemente disso, especialistas afirmam que o conflito já deixou consequências duradouras para a economia mundial.

    Economistas consultados pelo CNN Brasil Business apontam três grandes choques: um financeiro, outro ligado às commodities e um de abalo no regime econômico atual.

    O ex-diretor-executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI), Otaviano Canuto, avalia que a intensidade desses impactos varia de país para país, dependendo das condições econômicas internas.

    Para ele, existe um impacto econômico relevante na própria destruição da Ucrânia, que demorará anos para se reconstruir e se reinserir na economia mundial.

    Segundo Paulo Feldmann, professor da FEA-USP, a duração do conflito também influencia nesses efeitos. “Achava-se que a guerra ia ser de curta duração, e não está sendo, então os impactos são maiores”, diz.

    A questão financeira

    Para Canuto, a primeira consequência que a guerra já gerou foi a financeira, em especial com uma série de sanções anunciadas pelos Estados Unidos, Europa e aliados contra a Rússia, impactando setores como o bancário, de energia e mineração.

    O impacto dessas medidas é direto, e gera o que o economista chama de “isolamento sem precedentes”. A expectativa é de que o Produto Interno Bruto (PIB) da Rússia caia pelo menos 15% em 2022.

    “Dá para ver como houve uma tentativa de preparação da Rússia de minimizar [as sanções], um processo gradual nos últimos anos pelo banco central de venda de reservas de títulos em dólar e, em menor nível, euro, trocando por ouro e títulos chineses”, diz.

    Mas ele avalia que a Rússia não contava com a maior sanção até o momento, o bloqueio de bancos russos do Swift, um sistema de processamento de pagamentos internacional. Na prática, a medida isolou o sistema bancário russo do resto do mundo, dificultando a realização de transações com o exterior.

    Nesse sentido, Canuto afirma que um calote russo pela incapacidade de pagar os compradores de títulos do governo ainda é possível, mas que o impacto seria “menor, e não sistêmico” para a economia mundial.

    Ao mesmo tempo, “as sanções elevaram o patamar de incerteza para quem opera em finanças, o que piorou os níveis de confiança e prêmios de risco, com um medo de contágio de venda de ativos de emergentes. Hoje deu pra ver que isso não se concretizou”.

    Leonardo Paz, analista de inteligência do NPII-FGV (Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getulio Vargas), afirma que o choque financeiro foi o menor até o momento. O principal efeito foi uma saída de capital estrangeiro de mercados do Leste Europeu.

    Esses investidores migraram principalmente para os Estados Unidos, tradicionalmente um “porto seguro” em momentos de crise, mas também para mercados considerados atraentes no momento, caso do Brasil.

    Já Feldmann avalia que qualquer guerra reduz o ritmo da atividade econômica mundial, o que não é diferente nesse caso. O mercado mais afetado, porém, tem sido o europeu, com previsão de queda de atividade e alta do desemprego, o que pode acabar tendo repercussão negativa na atividade econômica global.

    Commodities disparando

    Para Canuto e Paz, o pricniapl eefeito da guerra na Ucrânia para a economia é a disparada nos preços de uma série de commodities. A Rússia e a Ucrânia são países relevantes na produção de grãos como soja, milho e trigo, e a economia russa é bastante ligada ao petróleo, gás natural e minerais como o alumínio.

    Desde que a guerra começou, todos esses produtos dispararam. Um levantamento da consultoria Safras & Mercados, produzido a pedido da CNN Brasil, aponta que o milho e a soja chegaram no maior preço dos últimos dez anos em março, e o trigo chegou a subir 49,5%.

    Paz afirma que a alta é especialmente problemática porque o petróleo —cujo tipo Brent passou da casa dos US$ 90 para os US$ 120— e o trigo são “produtos base de cadeia”.

    “Se aumenta o petróleo, não sobe só a gasolina, sobe toda a cadeia de derivados, como plástico, e cria um efeito de transbordamento para outros setores pela questão do transporte”, diz. Já no caso dos grãos, a alta afeta desde produtos derivados, como o pão, até a proteína animal, em que eles são usados como ração.

    Com muitos países já “apertados com a inflação e uma economia estressada”, essa alta piorou ainda mais as condições da economia global, e deve forçar os países a aumentarem os processos de aperto monetário e alta de juros para combater a inflação, às custas de uma redução da atividade econômica.

    Segundo Otaviano Canuto, “quando as commodities energéticas sobem, os choques se transmitem para outras commodities, ninguém escapa”.

    Isso gera repiques inflacionários em um contexto em que boa parte do mundo, em especial Europa, EUA e América Latina, já estavam com níveis de inflação bem maiores que o pré-pandemia. O desafio inflacionário se intensificou, e a perda de poder de compra tende a afetar a demanda

    Otaviano Canuto, ex-diretor do FMI

    Ao mesmo tempo, a guerra e as sanções geram bloqueios, restrições e rupturas em cadeias de suprimento, um problema que já contribuiu para a inflação em 2021. Como a Rússia e a Ucrânia exportam commodities chaves para a agricultura, como fertilizantes, e indústria, caso do paládio e alumínio, a tendência é gerar novas ondas de restrição de produção.

    O ex-diretor do FMI cita duas áreas específicas do mundo que devem ser mais afetadas. Primeiro, o norte da África, altamente dependente do trigo russo. Caso os países não consigam retomar o abastecimento da commodity, ele não descarta riscos de instabilidade política, além de uma piora na insegurança alimentar.

    E há o caso da Europa, altamente dependente do gás russo para energia e aquecimento. Com o preço do produto disparando, o cenário inflacionário do continente piorou, gerando um desafio para o Banco Central Europeu (BCE) de “conter a inflação mas evitar recessão”.

    Ele considera que os países emergentes, caso do Brasil, estão menos vulneráveis a esse ambiente, mas que, mesmo que os países exportadores sejam beneficiados pelos preços mais altos nas commodities, o impacto desses mesmos preços na economia será intenso.

    “No caso do Brasil, isso vem em um ano já complicado na atividade econômica e inflação. A balança de pagamentos deve ter mais saldo, receitas do setor público melhores. Mas a inflação maior retarda a saída do aperto monetário pelo BC, e traz um crescimento ainda menor”.

    Feldmann afirma que, nesse cenário de alta das commodities, o mais preocupante é a do petróleo, com os efeitos nos combustíveis. Para o professor, o único fato favorável para o Brasil, mas que tem pouco a ver com a guerra, é a valorização do real ante o dólar nos últimos meses, o que pode reduzir a pressão inflacionária já que o petróleo é cotado em dólar.

    “Outro impacto que ainda não sabemos dimensionar é a questão dos fertilizantes. A agricultura é muito importante para o Brasil e o mundo, e estávamos muito dependentes dos fertilizantes russos, o que demanda uma adaptação. Os produtos agrícolas devem subir”, diz.

    Globalização e multilateralismo ameaçados

    O professor da USP considera, porém, que o principal efeito da guerra na Ucrânia é a criação de um “baque na globalização”. “Ela vai acentuar a tendência nacionalista de vários países. É algo muito forte desde 2017, 2018”, observa.

    Com as disrupções geradas pela guerra e as sanções, Feldmann afirma que já há temores de falta de componentes e redução de produção, o que faz os países perceberem que não dá para depender de um fornecedor externo em certa áreas. “A tendência é de aumento na produção doméstica”, diz ele.

    É o caso do próprio Brasil, que já busca incentivar a produção interna de fertilizantes. O resultado, segundo o professor, é uma redução na globalização, que também deve repercutir no encolhimento do próprio comércio internacional.

    Leonardo Paz, da FGV, afirma que esse movimento já ganhava força, mesmo que com motivos distintos, a partir de 2016 e durante a pandemia. A partir daquele ano, surgiram posicionamentos protecionistas dos Estados Unidos e Reino Unido, privilegiando o bilateralismo ao invés do multilateralismo, apesar da oposição de países como França e Alemanha.

    No caso da pandemia, o impacto envolveu a mudança na percepção de que a cadeia de valor global precisa priorizar eficiência e custos menores de produção.

    “Cada país se defendeu como pode, e foi bloqueando itens que seriam exportados. O comércio internacional ficou menos livre, e entrou em uma discussão que a norma da cadeia de valor não é mais eficiência, mas sim resiliência, segurança”.

    A consequência foi o fomento da produção local de itens considerados estratégicos, como os chips semicondutores. A guerra, segundo o analista, trouxe novas interrupções nas cadeias e reforçou essa lógica, mas ela tem sido menos relevante para isso que os outros dois eventos.

    “Não acho que vai levar a uma grande onda de protecionismo, mas vai gerar uma reacomodação de determinadas cadeias para reduzir dependência de certos produtos, incluindo via deslocamentos dessas cadeias”, diz.

    Efeitos passageiros?

    Dos efeitos que a guerra na Ucrânia gerou, o que Leonardo Paz considera ser mais possível de aliviar caso o conflito cessasse é o preço elevado das commodities.

    “O preço subiu mais em função da precificação futura da disrupção do fornecimento delas, nós vimos que quando começou a ter negociações entre os países, com um certo avanço, os preços já tiveram um recuo pela expectativa de disrupção menor”, diz.

    Isso não significa, porém, que a queda seria significativa, mas sim que eles retornariam a um patamar próximo ao período pré-guerra, ou seja, ainda elevados devido ao descompasso entre oferta e demanda deixado pela pandemia.

    “Uma resolução rápida permitiria voltar à normalidade mais rapidamente, sem uma grande falta de produtos, e aí os preços conseguem se equilibrar mais”, avalia.

    Mesmo assim, ele lembra que a Ucrânia precisará de um grande esforço de reconstrução para só então se reinserir no mercado internacional, o que significa que o fornecimento de produtos pelo país, em especial agrícolas, ainda ficará prejudicado por alguns meses, talvez anos.

    Já em relação ao petróleo, a guerra deve fazer com que os países europeus busquem reduzir a dependência da Rússia, procurando outros fornecedores. “A dificuldade russa em escoar e a procura por outras fontes pelos europeus pode pressionar o preço, que ainda pode demorar um tempo para se acomodar de novo”, diz Paz.

    Saiba mais sobre o petróleo e como funciona a sua cotação

    [cnn_galeria active=”false” id_galeria=”589730″ title_galeria=”Saiba mais sobre o Petróleo e como funciona a sua cotação”/]

    Otaviano Canuto avalia que a guerra é um “ponto de mudança, de ruptura em relação à ordem anterior, acelerando coisas que já ocorreram na pandemia, como a criação de um sistema de pagamentos internacionais paralelo ao Swift ficando mais interessante para a China, e baseado na moeda chinesa”.

    “A base do dólar e euro como moedas para reserva é a segurança maior que em outros países, esse episódio pode mudar isso, gerar mais receios. Não vai tornar o dólar e o euro menos confiáveis do que a moeda chinesa ou de outro país, mas trincou. Agora, a preocupação com a geopolítica entra nos sistemas de pagamentos”, afirma.

    Já a desaceleração de uma certa “desglobalização” não deve ocorrer mesmo com o fim do conflito, com os países adquirindo cada vez mais a percepção de que é preciso internalizar cadeias de produção, mesmo com custos maiores, e reduzir a dependência de outros países.

    Para Feldmann, “fica claro” que o mundo está dividido, de um lado os Estados Unidos e do outro a China e a Rússia. “O temor é um retorno ao período da Guerra Fria, com países de um bloco não comprando do outro. Ainda não sabemos o que vai acontecer”, afirma.

    Tópicos