Veto dos EUA à carne do Brasil teria efeito limitado, dizem especialistas
País é o quarto maior importador de carne do Brasil, mas com menos de 4% do total das exportações
Uma carta de uma associação de produtores de carne bovina e um projeto de lei de um senador dos Estados Unidos divulgados na última quinta-feira (18), tem o mesmo objetivo: suspender as importações de carne bovina do Brasil. A justificativa seriam problemas sanitários do setor, em especial dois casos da “doença da vaca louca”.
O Ministério da Agricultura do Brasil já afirmou que os casos, reportados em setembro, não trazem riscos para o consumo de carne. Mas isso não evitou as novas propostas. A National Cattlemen’s Beef Association (NCBA) afirma que houve uma demora de mais de oito semanas para reportar os dois casos suspeitos de vaca louca, o que violaria exigências internacionais.
Já o projeto de lei do senador Jon Tester, do mesmo partido do presidente Joe Biden, cita falhas em reportar problemas sanitários e exigiria que os Estados Unidos confirmassem a qualidade da carne brasileira antes de retomar as importações. Mesmo assim, o governo brasileiro não acredita que o embargo ocorrerá.
O movimento nos EUA ocorre ao mesmo tempo em que a China, principal importadora do produto, mantém há dois meses uma suspensão de importação de carne bovina brasileira. Por outro lado, o Brasil tenta expandir as exportações para outros mercados, como o da Rússia.
A princípio, a ação dos EUA teria um impacto econômico pequeno, e reflete também dinâmicas políticas internas dos Estados Unidos, mas os danos na reputação brasileira podem ser grandes caso a suspensão ocorra.
O peso dos Estados Unidos nas exportações
Os dados mais recentes do Ministério da Economia mostram que, entre janeiro e outubro de 2021, os Estados Unidos foram o quarto maior importador de carne bovina brasileira. Entretanto, as importações correspondem a 3,9% do total, número bastante inferior à parcela chinesa, de 56%.
Ao mesmo tempo, as exportações para o país aumentaram 234,3% na comparação com o mesmo período de 2020, totalizando US$ 226 milhões. No ano passado, o país não ficou nem entre os 10 maiores importadores, com 1,3% do total das exportações.
O valor também é maior que em anos pré-pandemia: em 2017, as exportações de carne bovina entre janeiro e outubro totalizaram US$ 56,5 milhões. Os Estados Unidos seguem como o segundo maior destino para as exportações do Brasil, atrás apenas da China, e o comércio entre os dois países atingiu o maior nível desde 1997.
Para Vinicius Vieira, professor relações internacionais da FAAP, a participação pequena nas importações faria com que a suspensão tivesse pouco impacto econômico para o Brasil no curto prazo.
“A questão é menos econômica no curto prazo e mais de reputação. Existem barreiras sanitárias e técnicas que são usadas para satisfazer interesses protecionistas, mas elas impactam a percepção dos consumidores e no mercado em relação ao produto quando ele é vendido”, diz.
Ele afirma que a decisão dos Estados Unidos poderia não apenas afetar a reputação, e portanto as vendas da carne brasileira no médio e longo prazo, mas também representaria um “revés no que demoramos muito a conquistar, foi um processo penoso para conseguir exportar carne in natura para lá”.
Já Marcos Fava Neves, professor da FEA-RP-USP, acredita que o impacto econômico seria maior que o reputacional, “pois a reputação da produção brasileira é reconhecida no planeta, e o país é líder mundial há diversos anos no mercado exportador”. Entretanto, ele seria “muito menor” que o impacto com a suspensão pela China.
Para ele, a suspensão não deve se concretizar devido à ausência de motivos técnicos. Neves afirma, ainda, que o movimento ocorre enquanto o Brasil aumenta as vendas nos Estados Unidos enquanto o país ocupa um certo espaço brasileiro perdido na China.
Lia Valls Pereira, pesquisadora associada do Ibre-FGV, também considera que o principal impacto seria econômico. “Já temos a suspensão na China que é o maior mercado importador, quando começa a ter essas confusões, é ruim porque outros países podem embarcar nisso, e pode ter um efeito econômico”.
Segundo ela, a carne bovina é hoje o quinto principal produto de exportação do Brasil, mas tem 3% de participação, com isso, os efeitos econômicos seria mais limitados, mas os movimentos “não são um bom sinal”.
Pensando em parcela de mercado, Vieira diz que a suspensão da China é muito mais preocupante. O professor considera que seria possível para o Brasil compensar a suspensão norte-americana com outros mercados, como o da Rússia.
Outro risco é que a onda de suspensões se expanda para outros países. Vieira afirma que isso poderia ocorrer em função do cenário político interno dessas nações, e do Brasil.
“Sabe-se que a reputação não está muito boa na Europa, talvez alguns países possam adotar estratégias similares, até porque a pressão [protecionista] existe lá também. Um caso factível para isso, pensando em produtos agrícolas em geral, é a França”, afirma.
O presidente do país, Emmanuel Macron, se tornou um grande crítico do governo Bolsonaro, em especial pelo desmatamento da Amazônia. Ao mesmo tempo, o país possui um setor de agricultura importante. Ele buscará a reeleição em eleições presidenciais em 2022.
“Ele pode pressionar a União Europeia por uma rigidez com o Brasil, e a mudança de governo na Alemanha pode ajudar nisso”, diz Vieira.
Segundo o professor, “é difícil isolar o que é técnico e o que é político nessas questões sanitárias, qualquer problema vai ser usado pelos lobbies, faz parte do jogo”.
“Acho que depende de cada caso, mas pode fazer com que alguns países pensem que se China e EUA estão duvidando, há razões para suspender. Se o país não tem oferta suficiente de carne, fica mais difícil ele suspender”, diz Pereira.
Ela afirma que, em geral, disputas comerciais como essa são resolvidas na Organização Mundial do Comércio (OMC), mas ela se encontra paralisada. Com isso, as resoluções dependem de “boa vontade política”. Outros pontos, como a importância cada vez maior da pauta ambiental, e no caso da pecuária as emissões de metano, também gera dúvidas para o setor.
A situação nos Estados Unidos
A parcela do Brasil nas importações de carne dos Estados Unidos, porém, é maior. Dados do país mostram que o Brasil é o segundo maior fornecedor de carne, ficando atrás apenas do México.
O setor de carne ainda é grande nos Estados Unidos. O Instituo Norte Americano de Carne afirma que o segmento é o maior dentro da agropecuária do país, sendo responsável por 5,4 milhões de empregos e US$ 257 bilhões em salários, segundo um relatório de 2016.
A produção é mais focada no mercado interno, em 2017 apenas 12,9% do total foi exportado. Mesmo assim, os Estados Unidos são o terceiro maior exportador do produto no mundo. Segundo o Departamento de Agricultura, as importações e exportações variam devido à produção doméstica, mas, em geral, o país mais importa do que exporta carne.
Alguns estados do país se destacam como produtores de carne bovina, e entre eles está Montana, com o sétimo maior rebanho. O estado tem como representante no Senado norte-americano Jon Tester, que propôs a lei para suspender a importação de carne bovina brasileira.
Dados do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos apontam que, em 2019, a commodity que gerou mais receita para o estado foi a carne bovina, pelo terceiro ano seguido.
Já Jon Tester se auto intitula “o único agricultor do Senado do Estados Unidos”. O democrata foi reeleito em 2018 com 50,3% dos votos, mas representa um estado que vota em candidatos republicanos para a presidência desde 1996. De perfil moderado, Tester mantém a associação com a agropecuária em um estado com grande população rural.
A tentativa do senador de suspender as importações de carne brasileira também não é novidade. Em 2019 e 2017, Tester apresentou outros projetos de lei com o mesmo objetivo, também citando questões sanitárias.
Já em 2015, ele foi o autor de um componente de uma lei voltado ao setor de agricultura dos EUA que proibia a importação de carne de certas regiões do Brasil e da Argentina por questões sanitárias. À época, ele compartilhou uma publicação de um site de notícias que afirmava que a lei, incluindo o trecho com a proibição, beneficiaria os produtores de Montana.
A nova proposta de Tester ocorre no mesmo ano em que o governo Biden lançou o programa “Buy American”, que busca incentivar o consumo de produtos produzidos nos Estados Unidos.
“A questão do protecionismo era feita pelo Trump via tarifas, chegou a atingir produtos brasileiros, o Biden agora fala de comprar produtos americanos, há esse viés protecionista. Se ele prevalecer, há um impacto nas exportações brasileiras”, diz a pesquisadora do Ibre-FGV.
Vieira afirma que o movimento de organizações ligadas ao setor de carne tem menos força em 2021, e parecem mais ameaçadas, porque o ano não é eleitoral, mas as pressões podem ter mais impacto em 2022, quando ocorrem as chamadas eleições de meio de mandato.
“Eu acho que pode ter a pressão forte de determinados setores do Meio-Oeste americano que têm bastante pecuária, e possui áreas disputadas por democratas e republicanos. O governo Biden prometeu muito, teve dificuldade em entregar e as taxas de aprovação estão em queda”, diz.
Em 2022, os norte-americanos vão eleger senadores e deputados, e pesquisas apontam que os republicanos podem retomar o controle do Legislativo. Algumas áreas importantes para a eleição englobam regiões agrícolas, o que “pode tornar o governo mais suscetível às demandas desse lobby” como forma de melhorar o desempenho eleitoral.
Para Vieira, os democratas têm atuado de forma protecionista, mantendo um padrão do governo Trump, e isso reflete uma demanda do próprio eleitorado do país. “Não é só um protecionismo contra o Brasil, deve ser algo maior para todos os países. Existe essa pressão, e deve atingir setores como aço, alumínio, voltar com força em 2022”, diz.
Pereira afirma que, diante de uma popularidade mais baixa, Joe Biden pode colher demandas de alguns setores, como o agrícola, de modo a melhorar sua situação política, o que daria força para a suspensão.
“Em tese o Brasil estaria correto, é uma pressão dos produtores de carne bovina dos Estados Unidos. O Brasil afirma que está de acordo com as regras internacionais, comprovou que foram casos pontuais”, diz.
A professora lembra que “entrou mais carne bovina nos Estados Unidos em 2021, então há esse fator de competição. Esse grande crescimento deve ter um acendido um alerto para os produtores de carne bovina”.