“Trigo tropical” pode ajudar Brasil a reduzir dependência do exterior; entenda
Adaptação ao clima brasileiro permitiria aumentar área e quantidade produzida, diminuindo importações
Apesar do Brasil ser uma das principais potências agrícolas do mundo, ainda há uma dependência de importações para atender à demanda interna por alguns produtos. É o caso do trigo.
Entretanto, o governo federal e o setor privado intensificaram nos últimos anos um esforço para aumentar a produção brasileira em direção a uma autossuficiência. Por trás desse esforço, está o chamado “trigo tropical”.
Esse esforço pode fazer com que o Brasil domine a “última grande commodity agrícola que falta o país produzir”, na avaliação do professor da FGV Agro Felippe Serigatti.
O avanço do trigo tropical
A primeira vez que as sementes de trigo começaram a ser trabalhadas no Brasil foi em 1919, quando foi iniciado o esforço de adaptar uma cultura a um clima a princípio desfavorável, segundo Jorge Lemainski, chefe-geral da Embrapa Trigo.
O processo de seleção de sementes e cruzamentos artificiais geraria em 1940 o “divisor de águas”, o tipo Frontana, melhor adaptado as condições climáticas do Sul do Brasil. Os maiores avanços, porém, viriam a partir de 1954, quando foi criada a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Desde o início das pesquisas pela organização para criar uma semente adaptada à realidade brasileira, a produtividade elevou de 600 quilos por hectare até o recorde de 2011 de 1.800 quilos por hectare. Já em 2022, Lemainski aponta que a média deve chegar a 3.000.
Isso mostra, segundo o responsável pela divisão da Embrapa voltada ao trigo, como a “agricultura brasileira é movida à ciência”.
“O trabalho científico permite isso, foi algo parecido com a soja, que também começou no Sul e hoje está em todo o Brasil. É o uso do melhoramento genético, de aplicação de biotecnologia. O que ocorreu com a soja, está ocorrendo com o trigo”, pontua.
O movimento, conta, é chamado de “tropicalização do trigo”, um esforço de produzir variedades cada vez mais adaptadas ao Brasil. Isso permitiu, por exemplo, a expansão em direção ao Centro-Oeste, e mais recente foi possível plantar em Roraima.
Apesar do trigo já estar tropicalizado, ele ressalta que foco da Embrapa é intensificar esse processo. Hoje, quatro variedades já foram desenvolvidas especificamente para o ambiente tropical, mais resistentes à baixa temperatura e falta de chuvas.
O trabalho da Embrapa tem sido “desenvolver tecnologias para o momento de semear, cuidar e colher”.
Esses próximos trabalhos foram resumidos no Termo de Execução Descentralizada (TED) do Trigo Tropical, cujo objetivo é aumentar a área de cultivo do trigo em 100 mil hectares, com 1.760 toneladas de sementes de trigo produzidas e um crescimento da produção chegando a 20 milhões de toneladas anuais até 2031, permitindo reduzir a importação, com ganho de R$ 1,35 bilhão.
Atualmente, das 12 milhões de toneladas de trigo consumidas no Brasil, 6,5 milhões são importadas, com o restante sendo fornecido pelo mercado interno.
Segundo Jorge Lemainski, dois gargalos que precisarão ser superados para o avanço do trigo no Cerrado são a brusone, uma doença no clima tropical que atinge as plantações, e a intolerância do trigo ao calor.
Para desenvolver pesquisas na área e colocar o TED em prática, a Embrapa Trigo conseguiu na última terça-feira (20) a liberação de R$ 2,9 milhões requisitados ao governo federal.
Presidente Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo), Rubens Barbosa observa que, além das pesquisas da Embrapa, há um contexto econômico favorável para a expansão do trigo em direção ao Centro-Oeste e ao Nordeste.
“O aumento de preço é o motor para esse movimento, e de seis meses para cá, o aumento das exportações brasileiras para o mercado internacional tem sido outro motor. Exportamos trigo de boa qualidade, ano passado foram mais de 3 milhões de toneladas”, relata.
A valorização do preço do trigo ocorreu com a pandemia e, especialmente, com a guerra na Ucrânia, que envolveu três dos principais exportadores da commodity, a Ucrânia, Rússia e Belarus, com os volumes comercializados em queda.
Isso permitiu tanto que os preços disparassem quanto uma margem de exportação para o Brasil. Por outro lado, o quadro também criou uma pressão inflacionária no Brasil, com o preço dos derivados do trigo, como o pão, disparando.
Barbosa afirma que “o Brasil não pode ficar dependendo de 60% do consumo interno ser de importação, e desses 60%, 85% vem só de um país, a Argentina. É um caso parecido dos fertilizantes, com Rússia e Belarus”.
Com o ambiente economicamente favorável, o próprio setor privado passou a trabalhar pela expansão do trigo tropical, relata Barbosa, destacando que o aumento da produção pode levar a uma autossuficiência no médio prazo, importante para a segurança alimentar e reduzir o risco de problemas de fornecimento.
“Esse ano, a produção vai aumentar muito, e em regiões tropicais. Vai na linha de uma gradual autossuficiência, mas assim como soja e milho, vamos abastecer o mercado interno e exportar, e isso ainda vai demorar um tempo”, ressalta.
Ele observa que há o risco, ainda, de que a expansão do trigo não seja homogênea, e que custos de transporte façam com que a importação, ou a exportação, seja mais vantajosa em certas áreas que a produção interna.
Nesse sentido, ele projeta que “o Brasil gradualmente vai se tornar um país autossuficiente no trigo e um exportador razoável no mercado internacional”, mas que ainda será preciso complementar o consumo com importações.
Ele acredita que os preços do trigo também não devem retornar a patamares anteriores ao da guerra da Ucrânia, tanto devido à perspectiva de longevidade do conflito quanto a circunstâncias conjunturais que pressionam as cotações.
Com isso, há um espaço favorável para a expansão de plantações do trigo e consolidação do grão no cardápio de opções dos agricultores.
Trigo no Brasil
Os dados da Conab apontam que o Sul do país ainda concentra a produção, mesmo com iniciativas de expansão para o Cerrado. Combinados, o Rio Grande do Sul e o Paraná correspondem por quase 90% do total produzido.
A explicação, segundo o gerente da Embrapa Trigo, é climática. “No Sul temos regiões frias e úmidas, é um trigo que chamamos de subtropical, e quando vamos ao Brasil central, na região dos trópicos, o clima é quente e mais seco, com temperaturas mais elevadas e regime hídrico diferente do Sul do Brasil”.
Ele observa que “a atividade agrícola é um negócio”, e como qualquer outro, sua expansão depende de uma renda líquida. Com a alta de preços, isso acabou sendo uma realidade para o trigo, permitindo o crescimento.
“Em 2020, cultivamos 2,3 milhões de hectares, porque o trigo comercializado a R$ 40 a saca em 2019 passou para R$ 80 em 2020, e em 2021 ficou entre R$ 90 e até R$ 110. Em 2022, cultivando 3,1 milhões de hectares e mais de 9 milhões de toneladas de trigo, de um consumo de 12 milhões de toneladas, é 70%”, destaca.
Lemainski observa que o Brasil “gasta R$ 12 bilhões por ano para comprar trigo de fora do país”, o que poderia ser reduzido com uma autossuficiência na produção.
“Mantida a taxa de crescimento em 2020, 2021 e 2022, em 2030 teremos produção superior a 20 milhões de toneladas. O Brasil tem o privilégio de ter área muito favorável à agricultura”, destaca.
Felippe Serigatti, da FGV, avalia que o Brasil não possui naturalmente condições favoráveis à agricultura, e que na verdade elas “foram criadas”.
“Produzimos produtos de biomas temperados, tanto que os maiores fornecedores de trigo são Argentina, Estados Unidos, Ucrânia, Rússia, países de bioma temperado. Mudamos essa história produzindo mesmo em um clima mais quente, com dias mais curtos, criando variedades comercialmente viáveis e adaptadas às nossas condições climáticas”, afirma.
Nessa linha, o trigo é a “única grande commodity que ainda não conseguimos tropicalizar, mas estamos conseguindo caminhar nessa direção”.
Para ele, porém, “a parte mais importante não é ser autossuficiente, nem temos necessidade disso, mas é interessante estar oferecendo ao produtor mais uma opção para escolher plantar dependendo da rentabilidade, gerando mais renda, e o que não produz importa. Não precisa ser autossuficiente em tudo, já somos praticamente nos mais básicos”.
Mesmo assim, ele afirma que é importante também aumentar a diversidade de biomas em que o trigo é produzido para que a produção fique mais resiliente a problemas climáticos em cada região.
“Foi o caso da soja, por exemplo, mesmo com quebra no Sul neste ano com as chuvas e geada, produziu muito no Cerrado, e estamos com uma safra recorde”, explica.
Ele acredita, porém, que a autossuficiência ou aumento na produção não levaria necessariamente a uma queda de preços dos derivados do trigo no mercado interno, no máximo com uma queda marginal, já que “os preços são definidos no mercado internacional”.
A autossuficiência reduziria algumas imprevisibilidades, mas não todas, como as climáticas, e Serigatti considera que “poder produzir internamente é muito bom, é mais um item para o produtor. Podemos ficar autossuficientes em 10 anos, mas mesmo que não vire autossuficiente, só o fato de ganhar essa opção, ou poder diversificar regionalmente a produção, já é ótimo”.
O economista avalia que o governo está “tocando bem” os planos para expansão das áreas produtoras de trigo, destacando o “esforço para expandir o seguro e crédito agrícolas, fundamental nesse processo. Está fazendo o que pode considerando um contexto fiscal ruim”.
Já Barbosa acredita que as autoridades acabaram “pegando carona” no que já estava sendo feito pelos próprios empresários. “Internamente, a Embrapa submeteu o programa de aumento de produção de trigo em 2020, e só foi aprovado agora, por pressão do setor”.
“Agora que veio o programa da Embrapa, que vai na direção que a gente queria. Muitas coisas que propusemos, em especial logística, ainda estão pendentes, o governo vai precisar resolver. Transporte é muito importante”, afirma.
Ele avalia que é possível inclusive que o Brasil tenha autossuficiência na produção em cinco anos, e não dez como algumas projeções, mas “o governo não tomou nenhuma medida para reduzir a vulnerabilidade externa do Brasil na questão do trigo, quem fez isso foi o setor privado”.