‘Sem reforma administrativa, não dá para ter meta de inflação baixa’, diz ex-BC
Sergio Werlang, ex-diretor do BC na gestão de Armínio Fraga um dos pais do modelo de regime de metas, falou com Thais Herédia, comentarista de economia da CNN
O Conselho Monetário Nacional (CMN) está para decidir nas próximas semanas a nova meta de inflação para 2024. Se o órgão mantiver o ritmo que vem adotando nos últimos quatro anos, de redução em 0,25 ponto percentual (p.p.) ao ano, a meta cai para 3%, com margem de tolerância de 1,5 ponto para mais ou para menos.
No entanto, num momento em que a inflação oficial medida pelo IPCA supera 8% em 12 meses — bem acima do teto da meta de 5,25% previsto para este ano –, e diante de uma retomada mais forte da economia, que pode pressionar mais os preços, o sinal amarelo começa a soar: daqui a três anos, o país vai alcançar uma estabilidade que permita uma inflação na casa dos 3% ou é hora de a autoridade rever a velocidade da trajetória da meta?
Já passou da hora, na opinião de Sergio Werlang, ex-diretor de política econômica do BC na gestão de Armínio Fraga e um dos pais do modelo de sistema de metas para a inflação, implementado em 1999.
Isso porque, para além dos problemas gerados pelo choque de oferta trazido pela pandemia de Covid-19 — e sobre o qual o Banco Central tem tido pouco ou nenhum poder de bala –, o Brasil sofre com um problema estrutural no ajuste fiscal, alimentado por gastos elevadíssimos com aposentadoria e salários do funcionalismo público, que somam uma quantidade enorme de recursos e não param de crescer.
“Por isso, a meta de 4,5%, 4% estava de bom tamanho até que se aprove uma reforma administrativa“, diz. A reforma administrativa, cuja comissão especial foi instalada na Câmara dos Deputados nesta quarta-feira (9), prevê mudanças nas regras para funcionários da administração pública, com o objetivo de melhorar a eficiência da máquina pública e auxiliar na contenção de gastos.
O economista defende, inclusive, que a autoridade reveja as metas de inflação estabelecidas para os anos seguintes, sob o risco de ver sua credibilidade se deteriorar.
“O BC prometeu uma meta de 3,75% para este ano e não vai cumprir. Para o ano que vem, de 3,5%, e já está todo mundo duvidando”, diz. “Então, continuar baixando a meta é um sinal completamente contraditório com o que tem que ser feito no momento. No mínimo, devia parar de cair”.
Werlang conversou com Thais Herédia, comentarista de economia da CNN, sobre inflação, taxa de juros, reformas e programas sociais. Confira a entrevista na íntegra:
O Brasil tem condições de continuar reduzindo a meta, que, iria, teoricamente, para 3% ou menos?
Minha opinião há muito tempo é que não se deve baixar a meta no Brasil. Agora, há várias alternativas possíveis. O BC está com uma ideia já há algum tempo — e o Ilan (Goldfajn, ex-presidente do BC) foi o primeiro a falar disso –, que a meta boa é de 3% ao ano no longo prazo. Mas, no fundo, não há um argumento muito teórico a respeito disso. Eles olharam para o Chile, viram meta de 3% e acharam que é uma meta boa.
Sobre essa escolha da meta, tem um artigo muito interessante de um jornalista chamado Alex Ribeiro, para o qual ele analisa as atas do Copom (Comitê de Política Monetária) para ver as justificativas para baixar a meta, e não encontrou nenhuma.
Basicamente, nós temos um problema bem diferente da economia chilena e de outros países parecidos com a gente. Temos um problema estrutural no ajuste fiscal. Nós temos gastos elevadíssimos com aposentadoria e funcionalismo público, que somam uma quantidade enorme de recursos.
Torna-se, portanto, muito difícil fazer um corte fiscal no nosso país, porque esses gastos são obrigatórios. No caso da aposentadoria, não podemos reduzir os valores, que são protegidos pela constituição. Salários do funcionalismo não podem ser reduzidos, também por regras constitucionais. Além disso, servidores, na prática, não são demissíveis, porque, para isso teriam que ter uma avaliação de desempenho.
Então, a única forma que o Brasil tem de fazer um ajuste de curto prazo que não seja através de uma reforma administrativa ou um ajuste mais de longo prazo, que tornasse o governo mais eficiente e não tendo que contratar novos funcionários, é reajustar o funcionalismo um pouco menos e deixar a inflação fazer o trabalho ao longo do tempo.
Estamos vendo um exemplo este ano. Estamos tendo um ajuste da relação dívida PIB, ano que vem, vai ter mais espaço fiscal, tudo porque o funcionalismo não está sendo reajustado e a arrecadação do governo está crescendo. Então, a inflação no Brasil um pouco acima da de outros países — não precisa ser muito acima –, é muito natural. Por isso, a meta de 4,5%, 4% estava de bom tamanho em comparação com o Chile, de 3%, até que se aprove uma reforma administrativa.
Ou seja, antes de escolher uma inflação menor, nós temos que atacar uma das coisas que provoca e realimenta uma inflação mais alta e que acaba tornando o juro mais alto?
A inflação acaba fazendo com que o juro suba demais se você tiver a meta baixa, para fazer a inflação voltar para a meta. Esse problema da interação do fiscal com o monetário é que foi visto em vários trabalhos do professor Luís Araujo, que é um dos maiores economistas do Brasil — está hoje como assessor do ministro Paulo Guedes –, com vários coautores.
O que está acontecendo agora é que o BC prometeu uma meta de 3,75% para este ano e não vai cumprir. Para o ano que vem, de 3,5%, e já está todo mundo duvidando. Claro, as pessoas veem que não é possível fazer esse controle, a não ser que o BC coloque o juro a 8%. Mas não vai colocar.
Então, continuar baixando a meta é um sinal completamente contraditório com o que tem que ser feito no momento. No mínimo, devia parar de cair. Mas o que eu acho, e aí depende muito do discurso da autoridade monetária, poderia pelo menos parar em 3,75%, que é o desse ano, até que a reforma administrativa seja aprovada. Acho que isso seria uma das melhores alternativas.
Mas aí teria que rever também as metas de 2022 (3,5%) e 2023 (3,25%). Você propõe uma revisão inclusive dessas que já estão definidas?
Proponho sim, porque, se não, o Banco Central vai ficar o tempo todo perdendo a meta. Perdeu esse ano, aí ficou todo mundo acreditando que ano que vem ia acontecer. Mas, alguma hora, as pessoas começam a fazer as contas e veem que não vai dar, como está acontecendo agora. O foco já está se descolando da meta do ano que vem.
Do ponto de vista da credibilidade do BC e do próprio governo, já que quem decide a meta não é o BC sozinho, qual é a mensagem que o governo vai passar se escolher uma meta menor?
Depende muito da comunicação. Se insistirem numa meta menor, já perderam dois anos de credibilidade. A âncora da expectativa de inflação na meta é válida até o final de 2022, então já perdeu dois anos aí. Não pode ser simplesmente ‘vou mudar e pronto’, precisa de um bom discurso do governo inteiro. Por isso que eu digo que, no mínimo, tem que parar de cair. Mas, na minha visão, seria um bom discurso, bem alinhado, ficar em 3,75%.
Este ano, o Brasil vai ter uma inflação muito longe da meta, passando das bandas de acomodação. Esse cenário foi provocado por um choque de oferta muito maior do que um choque de demanda. Isso não aliviaria um pouco a responsabilização do BC, já que um choque de oferta não é uma coisa que ele pode controlar? E não valeria para 2022?
O ano de 2022 já é outra história. Se a perda de credibilidade sobre a meta ficasse só circunscrito a este ano, é outra conversa, não é o que está acontecendo. O que está acontecendo é que, cada vez mais, está indo para frente o descolamento da expectativa da meta. Agora, é verdade, pode se só um choque passageiro, o dólar pode acabar o final do ano a R$ 4,5, por exemplo, e tudo se encaixa de novo. Existe essa possibilidade. Mas eu diria que, no momento e durante um bom tempo, os economistas do Focus ficaram apostando nisso. Só que chegou uma hora que eles disseram: “não dá, vamos jogar a toalha, não vai chegar lá”.
E, do ponto de vista da taxa de juros, mesmo no cenário de agora, para quanto você acha que vai subir?
Vai chegar a uns 6,5%, por aí. Pode ser ainda neste ano, se a situação da inflação perdurar. Ou um número um pouco menor neste ano, de 5% ou 6%. Mas chegar a 6,5% é bem possível.
Uma taxa anual de 6,5% seria mais neutra, mais possível de controlar o processo inflacionário?
Seria. Seria capaz de estancar o processo inflacionário. Não causaria uma forte desinflação, mas seria um pouco acima da taxa real neutra que o BC calcula, que deve ser por volta de 3% ou pouco menos.
Há um debate acadêmico sobre o governo se aproveitar do fato de a inflação estar mais alta para duas situações: primeiro, ter uma folga maior de gastos, levando em conta o modelo do teto implementado. Segundo, porque melhora a equação da relação dívida PIB, já que a gente teria, não só um PIB maior, como o deflator do PIB também acaba sendo maior, gerando uma noção de alívio das contas públicas, que está baseada numa conta estatística e não necessariamente na realidade da estrutura da realidade do gasto público brasileiro.
Você está certa em relação a essas duas coisas, mas tem um terceiro fator, a arrecadação também aumenta. Porque a arrecadação é nominal, não é real. Então você arrecada mais também. Tem uma essência também de maior arrecadação quando a inflação fica maior. Você pode ver que estamos batendo recorde atrás de recorde na arrecadação. É efeito da inflação.
E isso não é bom para o Brasil, né?
Estruturalmente, não.
Aproveitar uma inflação mais alta cabe nessa colocação?
O que eu acho que a gente tem que aproveitar é que deu uma folga na trajetória fiscal. Agora, a folga não deve ser aproveitada sendo utilizada, deve ser aproveitada para ser racionalmente utilizada. Por exemplo, para organizar os programas sociais e fazer o famoso Bolsa Brasil ou Renda Brasil, que nunca foi para frente e que, infelizmente, tem que mexer em coisas estruturalmente complexas ou tem que ser encarado de frente o problema da reforma administrativa, o que parece que ninguém quer.
Infelizmente, não tem mágica. Seria possível fazer um programa social desse tipo, muita gente já explicou como fazer. Um programa que aumente o alcance e o tamanho do Bolsa Família não é uma coisa impossível de fazer. Agora, vai ter que mexer em outros programas sociais, que são muito menos efetivos do que o Bolsa Família.
O aproveitar entre aspas teria que ser para fazer essa organização e não necessariamente seguir com essa mesma estrutura fiscal?
Exatamente, seria um grande erro seguir com essa estrutura.
*Texto publicado por Ligia Tuon