O governo deveria gastar mais para aumentar o PIB? Especialistas divergem
Crescimento econômico fraco pelo terceiro ano seguido tem levado economistas a questionarem a rigidez do ajuste fiscal aplicado no país
A confirmação de mais um ano de crescimento baixo no Brasil em 2019, agravada por uma pandemia que está paralisando a economia global, trouxe lenha para a fogueira de um debate que, aos poucos, ganha força nos corredores acadêmicos e governamentais do país: o governo deveria gastar mais para ajudar o PIB a crescer?
Divulgado no início deste mês, o PIB de 2019 subiu apenas 1,1%, no terceiro ano consecutivo de desempenho decepcionante – em 2017 e 2018 avançou 1,3% ao ano, depois de despencar 7% na recessão de 2015 e 2016. O desemprego também pena para sair da faixa dos 11% a 12%, banda a que chegou em 2017 e da qual até agora não saiu.
Não bastando, o desempenho lento foi atingido em cheio neste começo de 2020 pelo avanço exponencial da epidemia de coronavírus, que gerou uma paralisia global na economia e nos mercados e tem levado autoridades da China aos Estados Unidos – incluindo o Brasil – a pensarem políticas que injetem recursos em seus países e minimizem as perdas.
Por aqui, a pandemia encontra a recuperação mais lenta da história de nossas recessões, em meio a uma contenção generalizada nas contas dos governos federal, estaduais e municipais. Depois de anos de expansão generosa dos gastos públicos até 2015, que desembocaram em inflação, dívida e recessão, os governos se viram sem recursos e secaram as torneiras. São tesouradas que vão de contratações de servidores a gastos com saúde, educação e infraestrutura.
O consumo do governo é um dos principais componentes do PIB de qualquer país, e os especialistas discordam pouco do diagnóstico: o fato de os nossos governos estarem gastando menos é um dos principais fatores para que a economia não cresça. As divergências, entretanto, começam deste ponto para frente: se sabemos que a participação do governo está fazendo falta no PIB, não está na hora de ele ficar um pouco menos austero?
De um lado, estão os que argumentam que a dívida brasileira passou muito além do nível de segurança, que os gastos atuais já são maiores do que a receita e que aumentá-los só redundaria em mais dívida e menos confiança. A solução, neste caso, passa pelas reformas que reestruturam a maneira de o governo gastar (como a da Previdência e a administrativa) e por uma espécie de período de transição amargo, mas inevitável, em que parte dos investimentos públicos enxugados será, aos poucos, substituída pelo privado.
Do outro lado, estão os que argumentam que o PIB está muito baixo e o desemprego muito alto para continuarem sendo ignorados, e que o ajuste fiscal poderia estar alguns graus abaixo do que chegou. Para eles, é saudável que o governo continue racionando despesas gerais, como salários ou custos administrativos, mas a rédeas dos investimentos poderiam ser um pouco mais frouxas.
Uma alternativa que ganha coro nesse grupo é flexibilizar a regra do teto de gastos – criada em 2016, ela determinou que os gastos totais do governo federal não podem crescer mais do que a inflação do ano anterior. Para alguns, os desembolsos relacionados a investimentos poderiam ser tirados dessa conta.
“É evidente que em um país como o Brasil, profundamente carente de serviços públicos, educação, saneamento, transporte, segurança, bloquear o Estado de investir bem é uma coisa criminosa”, disse, em uma apresentação no início do mês, o economista André Lara Resende, um dos idealizadores do Plano Real e autor do livro recém-lançado “Consenso e contrassenso – Por uma economia não dogmática”.
A era da Escola de Chicago
Lara Resende é uma das vozes que têm trazido para o Brasil um debate que cresce no mundo, questionando a austeridade fiscal irrestrita que dominou vários países desde a crise financeira internacional de 2008. Para alguns, trata-se de uma corrente baseada nas ideias da Escola de Chicago, a prestigiada universidade americana berço do neoliberalismo que se espraiou pelo mundo nos anos 1970 e1980, que hoje não faz o mesmo sentido.
As linhas econômicas exportadas de Chicago defendem que políticas de juros e inflação – a chamada política monetária, feita pelos bancoscentrais – são um mecanismo mais eficiente para o equilíbrio econômico de um país do que o manejo dos gastos públicos – a política fiscal. Desde a crise de 2008, entretanto, elas têm sido colocadas à prova.
Hoje, lugares como Japão, Dinamarca e os países da Zona do Euro já possuem juros negativos, o que, pela teoria, deveria ser um hiperestímulo ao consumo, e não é o que está acontecendo. Nomes como o ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) Olivier Blanchard, o vencedor do Nobel Joseph Stiglitz e o ex-chefe do Banco Central Europeu Mario Draghi são alguns que têm questionado a efetividade dos juros baixos e defendido a necessidade de mais gastos dos governos como suporte extra.
No Brasil, um cenário parecido começou a se reproduzir. A Selic, taxa básica de juros do país, já tombou de 14,25% ao ano em 2016 para 4,25% hoje, e, ainda assim, o crescimento não sai do 1% em que empacou. “A queda dos juros é bem-vinda, mas não é o suficiente para tirar o país da crise”, diz Nelson Marconi, coordenador do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimentismo da Fundação GetulioVargas (FGV). “Se o desemprego é alto e a expectativa de lucro continua baixa, o empresário não vai investir só porque os juros caíram.”
Com a pandemia do coronavírus, a discussão se tornou ainda mais latente. Uma lista grande de países que inclui Estados Unidos, Reino Unido, Japão e Austrália, além do Banco Mundial, já anunciou pacotes de estímulos que destinam bilhões de dólares para saúde, benefícios sociais ou crédito extra à economia. No Brasil, o governo editou na sexta-feira (13) uma medida provisória que destina R$ 5 bilhões para reforços na saúde, além de ter antecipado metade do 13º salário de aposentados e reduzido juros do empréstimo consignado do INSS para atender a população mais carente.
Por que não gastar
O principal argumento daqueles que defendem que o Brasil não abandone, agora, o ajuste fiscal adotado não é que gastar mais seja ruim para a economia. É, simplesmente, que não há dinheiro para isso.
“Na crise de 2009, o governo aumentou os gastos, o que é desejado em momentos de contração, mas é preciso ter as ferramentas para isso,e o Brasil as perdeu”, disse Josué Pellegrini, diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI). Ele menciona a grande diferença dos cenários: o país chegou a 2009 com superávit primário de 2% do PIB e dívida bruta total na faixa dos 50% do PIB. Hoje, caminhapara o 7º ano de déficit (-1,3% do PIB em 2019) e a dívida bruta está em 76%, patamar bem mais alto que o de outros emergentes.
O resultado primário é um indicador de quanto o governo está gastando a mais ou a menos do que arrecada. A cada ano que registra déficit, significa que precisou de mais dinheiro do que recebeu, e a dívida total cresce. Não é um problema ter déficit e se endividar de vez em quando, para investir e crescer, mas, para isso, é de bom tom não partir de uma dívida já alta. O grande medo da comunidade internacional é que vá ficando difícil para os países emergentes honrarem seus pagamentos e que volte o fantasma dos calotes e renegociações, coisa que já aconteceu em vários deles, inclusive no Brasil, nos anos 1980, e na Argentina, atualmente.
“Não faz sentido flexibilizar a regra de gastos para tirar o investimento; mudar a regra não muda o fato de que será dinheiro saindodo caixa e aumentando a dívida”, disse Fábio Klein, analista de finanças públicas da Tendências Consultoria.
“O investimento é a parte mais prejudicada por essa política de ajustes, porque as despesas obrigatórias tomam todo o orçamento, e nãodá para contar com o consumo do governo agora”, diz Paulo Picchetti, economista da FGV especializado em inflação e ciclos econômicos.
Pela Constituição, há um grupo de despesas públicas obrigatórias, que são aquelas nas quais o governo não pode mexer e que crescem sozinhas. Nelas estão as aposentadorias, benefícios sociais e os salários dos servidores, e este grupo já toma mais de 90% do orçamento anual. Todo o resto – que é onde ficam os investimentos – está nas chamadas despesas discricionárias, e tem que dividir o dinheiroque sobra. Se a arrecadação cai e deixa de ser suficiente para tudo, os cortes só podem acontecer nessa pequena parte não obrigatória do bolo.
O grande objetivo final de boa parte das reformas em jogo é conseguir tornar os gastos obrigatórios mais leves e abrir folga no orçamentopara a parte dos investimentos. É por isso que muitos são ferrenhos defensores delas. “Não serão políticas de curto prazo que resolverão o problema, elas só nos prenderão mais no imediatismo e adiarão mais a agenda estrutural”, disse à CNN a economista ZeinaLatif.
De onde tirar o dinheiro
Marconi, da FGV, é favor de uma ampliação dos investimentos públicos agora, dado que o crescimento prometido não aparece. Concorda, entretanto, que isso não pode ser feito de maneira irresponsável e com aumento da dívida. “Para poder investir mais, o governo tem que cortar em algum outro lugar”, disse.
Uma possibilidade, diz, é passar um pente fino nos subsídios, as isenções de impostos concedidas a empresas e que sugam mais de R$ 300 bilhões do orçamento ao ano. “Já foi visto no governo Dilma que muitos desses subsídios não geraram resultado, e é possível achar setores em que cortá-los sem causar danos sociais”, disse Marconi.
O economista Márcio Holland, que dirige o Observatório de Estatais da FGV, também é a favor de uma via intermediária. “Nós erramos nas duas pontas”, disse Holland, que foi secretário do Ministério da Fazenda no governo de Dilma Rousseff. “Erramos nos anos de Lula e Dilma, quando achamos que os gastos públicos eram muito bons para o crescimento, e erramos agora, ao acreditar que investimento público é muito ruim. Não é nem uma coisa e nem outra. Há uma fração desse gasto que é necessária e fundamental, que é o investimento em infraestrutura, em inovação e em capital humano, e isto precisa ser repensado.”