Justiça reverte decisão e inocenta Cyrela em 1° caso da lei de proteção de dados
Empresa era acusada de compartilhar dados de cliente que comprou imóvel e, depois, começou a receber ligações de bancos e lojas de decoração
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reverteu, em segunda instância, a condenação da construtora Cyrela em um caso em que a empresa era acusada de compartilhar dados e contatos de um cliente com lojas e bancos, sem seu conhecimento, após a compra de um imóvel dela.
A empresa havia sido condenada pelo caso em setembro do ano passado, no que se tornou a primeira sentença pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil, a lei que garantiu aos consumidores o direito de saber e controlar o uso que as empresas fazem de suas informações.
No novo julgamento, realizado na semana passada, em 24 de agosto, o entendimento foi de que não houve evidências suficientes para provar que o compartilhamento das informações tivesse sido feito pela incorporadora, e não por outras imobiliárias e corretores com quem o cliente também teve contato.
Os desembargadores também destacaram o fato de que a LGPD ainda não estava em vigor quando a compra do imóvel aconteceu, em novembro de 2018. Os advogados do cliente disseram ao CNN Brasil Business que irão recorrer da decisão.
Aprovada em agosto de 2018, a LGPD entrou em vigor em 18 de setembro de 2020 – onze dias antes da primeira decisão que condenou a Cyrela, proferida em 29 de setembro.
Apesar da nova decisão agora favorável à empresa, advogados consultados pelo CNN Business avaliam que o desfecho deste primeiro caso não necessariamente prejudica os consumidores em futuros casos ligados à LGPD, já que a lei é ainda muito jovem e está apenas começando a formar os primeiros consensos no Judiciário.
Ofertas de decoração e financiamento
Na ação, o cliente – que é também advogado na área de direitos digitais – conta que passou a receber uma série de mensagens e ligações de serviços ligados ao mercado imobiliário, como financiamentos, reformas e decoração, semanas depois de concluir a compra de um apartamento da Cyrela em São Paulo.
Muitas das abordagens mencionavam diretamente o nome e local do empreendimento onde o imóvel foi comprado.
No primeiro julgamento, no ano passado, a juíza responsável pelo caso entendeu que houve violação na proteção da privacidade do consumidor e condenou a Cyrela a pagar uma indenização de R$ 10 mil por danos morais; decisão de que a construtora recorreu e que, agora, está revertida.
“Mera chateação”
Além de apontar para a insuficiência de provas, a nova decisão que inocenta a Cyrela também derrubou o pagamento da indenização, avaliando que “o simples encaminhamento de mensagens genéricas por e-mail ou WhatsApp não é conduta suscetível de causar dano moral” e é apenas um “mero aborrecimento”, de acordo com o relatório dos votos.
É um entendimento comum nas decisões relativas a cobranças de bancos e outros tipos de vendas, em que apenas as ligações consideradas “abusivas”, que se repetem dezenas de vezes em poucas horas, por exemplo, costumam ser condenadas.
Direito anterior à LGPD
Ao CNN Business, o escritório VilelaCoelho, responsável pela acusação, afirmou que vai recorrer da decisão. “Como o consumidor vai provar que foi a Cyrela? Só se tiver acesso à base de dados dela ou se ela confessar”, disse o advogado e sócio da VilelaCoelho Mario Filipe Santos.
“É uma decisão que abre um precedente perigoso, porque levanta a ideia de que a empresa pode se proteger na dificuldade do consumidor e, portanto, violar a lei à vontade.”
Santos também afirma que o direito à proteção dos dados dos consumidores pelas empresas a quem são fornecidos existe desde muito antes da LGPD, o que não invalidaria a reclamação só porque ela foi feita antes da nova lei de dados.
“Está na Constituição, no Código de Defesa do Consumidor, no Marco Civil da Internet, no Cadastro Positivo. A LGPD é uma lei que reuniu todos esses direitos”, afirmou.
A nova lei é citada na ação, que foi aberta em 2019, mas não é a principal referência usada na acusação, que usa como base as outras legislações anteriores que já tratavam da proteção da privacidade dos consumidores.
A avaliação de que a atuação da incorporadora teria violado, também, a recém-aprovada LGPD foi ampliada depois pela juíza que analisou o caso na primeira instância e que rendeu a primeira condenação, no ano passado.
Esforços preventivos
Em nota à reportagem, a Cyrela reforçou a falta de provas que indicasse o mau uso dos dados de seus clientes e afirmou que tem feito diversos programas para ampliar as políticas de proteção de dados e se adequar às exigências da nova lei de dados.
Entre as ações adotadas, a incorporadora menciona a criação de um comitê interno de privacidade, a contratação de especialistas voltados exclusivamente para a gestão da proteção dos dados e treinamentos de funcionários, parceiros e corretoras sobre as novas regras da LGPD.
“Este resultado [do processo] é de extrema relevância para o mercado imobiliário, ressaltando a importância da implementação do programa de privacidade da companhia, que tem dedicado esforços no aspecto preventivo (…) e na intensificação das comunicações internas e externas referente à proteção de dados”, disse a Cyrela.
LGPD dá mais segurança a casos futuros
Na avaliação da advogada Patrícia Peck, presidente da comissão de Proteção de Dados da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP), o “caso Cyrela” sofre de ser o primeiro e de ter acontecido em um momento ainda de transição para a Lei Geral de Proteção de Dados.
Por essa razão, ela não acredita que uma decisão a favor da empresa, agora, possa dificultar as reclamações de outros consumidores no futuro.
“A jurisprudência sobre a LGPD ainda está sendo formada”, disse Peck. “Este é apenas um dos primeiros casos, e em uma situação muito particular. Não deverá ser determinante para casos futuros.”
Ainda de acordo com a advogada, com a LGPD agora em pleno funcionamento, o consumidor tende a ganhar de maneira mais automática proteções que, neste julgamento, acabaram pesando a favor da Cyrela.
É o caso de ser transferido do consumidor para a empresa a responsabilidade da prova (a empresa que deve provar que não compartilhou dados com terceiros), e também a obrigação da empresa de responder também por parceiros e terceirizados, caso das imobiliárias e corretores parceiros.
Essas obrigações, de acordo com ela, aparecem agora de maneira bem mais explícita na Lei Geral de Proteção de Dados. “Se a lei já estivesse em vigor, com toda certeza o desfecho poderia ter sido diferente”, disse.