Como fica a economia do Afeganistão sob o ‘novo-velho’ regime do Talibã
Além de acordo com a China para mineração de terras raras, Talibã pode se unir aos Estados Unidos contra o Estado Islâmico-K, o que pode lhe render apoio financeiro
A volta do Talibã ao poder no Afeganistão coloca em xeque uma economia já enfraquecida por guerras civis e outros conflitos que marcam a história da região desde o século passado. O regime, conhecido por seu tom autoritário, extremista e pela violação de direitos humanos, além de gerar temor na população, causa incertezas em países e organizações que oferecem subsídios ao país.
A receita para o fiasco econômico mora nesse cenário nebuloso. Além disso, o Talibã ainda precisa descobrir como acessar US$ 10 bilhões em ativos e reservas do banco central afegão, cuja maioria está no exterior.
A situação é difícil, mas nem tudo está perdido, segundo especialistas ouvidos pelo CNN Brasil Business, que veem chances de a situação ser ao menos parcialmente revertida. E a luz no fim do túnel vem da China, com quem faz fronteira.
Interesses chineses
O país asiático tem interesse estratrético no país por diversos motivos. O primeiro é a oportunidade de de ganhar território, preenchendo o espaço dos Estados Unidos, que anunciaram a retirara de suas tropas das terras afegãs após 20 anos de guerra.
Além disso, segundo o próprio porta-voz do Talibã, Zabihullah Mujahid, a China se interessa pelos minerais do país. “É nosso parceiro mais importante e representa uma oportunidade fundamental e extraordinária para nós, porque está pronta para investir e reconstruir nosso país”, disse na semana passada.
O Afeganistão abriga uma quantidade expressiva de cobre, petróleo, ouro, urânio, carvão, lítio, gás natural, minério de ferro, pedras preciosas, gesso, mármore, chumbo, cromo, enxofre, talco e bauxita. “Graças aos chineses, (essas minas) poderão voltar a funcionar e modernizar-se”, enfatiza o porta-voz do Talibã.
Em 2019, o Ministério de Minas e Petróleo do Afeganistão estimou que existem cerca de 30 milhões de toneladas de cobre no país e cerca de 2,2 bilhões de toneladas de minério de ferro, com um valor de mais de US$ 350 bilhões.
O Departamento de Defesa dos Estados Unidos teria descrito o país como “a Arábia Saudita do lítio”. O metal é usado em baterias para dispositivos eletrônicos e carros elétricos. A comparação leva em consideração o fato de a Árabia Saudita ser o principal produtor de petróleo do mundo. O Ministério afegão afirma que existe em terras afegãs 1,4 milhões de toneladas de minerais de terras raras, sem citar nenhum deles especificamente.
“A China está chegando perto de países nos quais pode participar da reconstrução. Para a China, tudo é investimento — é uma visão muito capitalista e mercantilista, por incrível que pareça, apesar de eles seguirem um regime político comunista”, diz Andrew Traumann, pesquisador do GEPOM (Grupo de Estudos e Pesquisas em Oriente Médio). Além disso, segundo o professor, a China não quer ter que se preocupar com o Afeganistão em eventuais disputas por território.
Outro interesse da China é que o ambiente político no Afeganistão se mantenha estável, temendo ataques de grupos uigures — muçulmanos que migraram da região autônoma de Xinjiang, no noroeste chinês, para território afegão, acusando a China de repressão religiosa. No passado recente, a China chegou a acusar o grupo de manter ligações com a Al-Qaeda.
“E acredito que vai haver um grande investimento da China no Afeganistão em troca da não-interferência com a minoria muçulmana chinesa que é reprimida pelo governo”, diz o especialista.
União com os EUA
Outro caminho possível que pode beneficiar o Talibã é uma união com o Pentágono norte-americano contra o Estado Islâmico-K. O regime vem tentando adotar um tom mais moderado do que tinha há 20 anos, o que poderia facilitar essa proximidade. Com isso, há a possibilidade até de um desbloqueio dos US$ 10 bilhões do Banco Central, segundo Leonardo Paz Neves, analista de inteligência do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV.
Para o especialista, não é impossível que o grupo “não cause problemas” para os Estados Unidos desta vez, com foco em benefícios próprios.
“É claro que vai demorar para o Talibã conseguir se mostrar moderado, isso se ele quiser. Mas não acho que seja impossível. De repente, se isso acontece, vejo um caminho possível, médio provável, de os EUA irem desbloqueando certas reservas em relação aos serviços que o Talibã possa fazer para eles”, diz.
Fraqueza econômica
Grande parte da população afegã vive abaixo da linha de pobreza — delimitada pelo Banco Mundial àqueles que vivem com até US$ 1,90 por dia –, e o país tem níveis de analfabetismo altíssimos, sobretudo, porque não teve tempo de desenvolver um mercado de trabalho robusto o suficiente e ainda tem, como base de sua subsistência, a agricultura e a produção têxtil, ficando para trás quando o assunto é a industrialização, segundo Traumann.
“35% da população do Afeganistão vive abaixo da linha da pobreza, e 56% na informalidade, trabalhando em pequenos comércios e camelôs. E o grande problema de se ter muita informalidade é que as pessoas não pagam impostos, então o Estado perde a renda”, explica.
A situação piora quando se leva em conta que 42% do PIB do afegão vêm de doações da comunidade internacional, como órgãos como o Unicef, a Organização das Nações Unidas (ONU) e de outros países, como os Estados Unidos e a França, segundo Traumann. “E é esse o ponto: o que o Afeganistão fará agora perdendo 42% do PIB (Produto Interno Bruto do Afeganistão)?”
Todos os países e instituições citados acima, inclusive, já anunciaram que, com o ressurgimento do Talibã, deixarão de fazer as doações, o que coloca o país em uma situação ainda mais complicada.
O PIB do Afeganistão, em valores brutos, é de US$ 19,29 bilhões, segundo dados de 2019. Como base de comparação, o número é pouco maior que A cidade de Osasco, na Grande São Paulo, por exemplo, tem um PIB de cerca de R$ 15 bilhões de dólares.
A aposta de Traumann para a reversão das perdas econômicas passa pela criação de uma indústria de minério com a ajuda da China.
Educação e mercado de trabalho
Ainda que o ‘novo-velho’ regime consiga pavimentar os caminhos para atrair investimentos, o país já vem de uma situação econômica bastante complicada, que dificilmente seria resolvida sem algum tipo de ruptura cultural, já que nunca deixou de ser o país no qual as crianças são mais incentivadas a trabalhar do que estudar. E, mesmo com uma eventual mudança, os frutos não seriam colhidos no curto ou médio prazo.
“O Afeganistão já recebeu doações milionárias de fundos da ONU, dos Estados Unidos, para que o país investisse em educação. Mas a região é tão pobre, que não adianta ter gente graduada, se não vai ter mercado para absorver os profissionais”, diz Traumann, do Gepom. Além disso, a decisão de não investir no futuro educacional das crianças, muitas vezes, vem das próprias famílias. “Muitos pais preferiam que seus filhos não fossem estudar para que pudessem trabalharem na agricultura, que é responsável por 31% da economia do país. É uma situação bastante complicada”, diz.
O ambiente de negócios afegão é pouco desenvolvido, o que também dificulda o cenário, segundo Neves, da FGV.
“Os EUA tentaram formar pessoas, mas tiveram dificuldades em criar um ambiente de negócios onde o capital privado prosperasse. Formar uma pessoa é colocá-la em uma faculdade, ter mais mulheres na escola, mas, quando você quer ter capital, você precisa fomentar um ambiente de negócios para dar microcrédito, oferecer certas compras governamentais para garantir certos preços, e você tem essa dificuldade muito grande para fazer isso em outras cidades além de Cabul (capital do Afeganistão)”, explica.
Neves afirma que outros motivos, como a guerra civil prolongada e um governo afegão corrupto, também fizeram com que o mercado de trabalho no Afeganistão fosse duramente prejudicado.
Atualmente, a taxa de desemprego do Afeganistão é de 11,73%. “Não interessa quanto dinheiro outros países coloquem em locais mais pobres, mesmo assim você tem uma dificuldade muito grande de estimular o empreendedorismo e a iniciativa privada em um lugar com o material humano tão limitado quanto no Afeganistão. Uma pessoa com doutorado leva 20 anos, em média, para se formar. O Afeganistão teve pouco tempo. Essa primeira leva de primeiras pessoas que começaram a estudar depois da queda do Talibã, teve pouco tempo. É difícil criar um mercado organizado em um ambiente tão adverso”, afirma.
Fato é que nenhuma empresa quis investir em um país que, mesmo livre do Talibã após a invasão dos Estados Unidos em 2001, continuou cercado de guerras civis. Soma-se isso ao fato de que, por lá, existem poucas ou quase nenhuma forma de fazer exportações.
A base do ópio
O Talibã não deixou de existir quando os Estados Unidos o tirou do poder.
Vivendo na sombra nos últimos 20 anos, o grupo ainda era responsável por boa parte da movimentação ilegal de ópio (um dos principais ingredientes para a fabricação da heroína), do recebimento de doações de bilionários que simpatizam com a ideologia defendida por eles e também da taxação ilegal dos agricultores e de produtores e faziam a segurança do que é transportado pela fronteira com o Paquistão.
Estimativas de um relatório do Inspetor Geral Especial dos EUA para o Afeganistão (SIGAR, na sigla em inglês ) apontam que o ópio representa 60% da renda total do Talibã fora do poder. Agora, como regime dominante e acesso a outras fontes de renda, a situação deve deixá-lo financeiramente mais seguro.
“O Talibã não desapareceu e se aproveitou do fato de que o Afeganistão é dominado, em grande parte, por senhores de terra que agem como prefeitos de seus clãs. O grupo estava atuando em diferentes localidades ao longo desses oito anos como um poder paralelo, negociando mais do que o governo com os senhores locais, e tinha uma receita boa que controlava”, diz Neves, da FGV.
Em seu primeiro regime, o Talibã tinha certo pudor e negava, por motivos religiosos, a produção e venda de ópio — o islamismo proíbe o uso de álcool e drogas —, algo que, segundo Neves, não deve ser tão difundido pelo novo regime.
“Acredito que o governo atual será mais pragmático. Precisamos ter em mente que não é o mesmo Talibã. Passaram-se 20 anos, e muitas daquelas pessoas morreram, inclusive Osama Bin Laden. É outra geração, e, pelo jeito, uma que já perdeu o pudor ao dizer que mexe com ópio”, afirma. “Também digo isso em relação aos direitos humanos. Acho que o perfil será baixo em relação a isso, acho que o governo não vai fazer mais aquelas execuções em praça pública para não chamar a atenção internacional, porque eles querem se manter no poder”.
Um Talibã moderado é possível?
Mas mostrar-se moderado em um extremo é algo que parece, no mínimo, muito improvável. Os novos líderes do regime têm prometido um Talibã menos violento do que o anterior, inclusive, afirmando que, desta vez, deixarão mulheres estudar.
Neves considera esse discurso infundado. “No Afeganistão, não existem escolas para todos. As meninas e os meninos não podem estudar nos mesmos locais, de forma que as escolas vão ser voltadas para os homens, não para as mulheres, e isso vai servir de desculpa”, diz. Ele também não descarta a existência de cotas em cargos de poder apenas para que o grupo mostre ao exterior que está menos extremista quando o assunto é gênero.
Recentemente a jornalista afegã Behesta Arghand entrevistou um membro do Talibã na televisão, algo impensado na primeira tomada de poder do grupo, que não oferecia espaço para mulheres.
A tentativa de parecer mais inclusivo, no entanto, parece estar falhando — e Arghand deixou o país sob ameaças de morte. Em entrevista à CNN, Arghand afirmou que deixou o Afeganistão porque, “como milhares de pessoas, tem medo do Talibã”.