Biden deve coroar fim do ciclo de valorização do dólar no mundo; o que esperar
Processos de desvalorização são cíclicos e já aconteceram na história. Mas, desta vez, mudança estrutural em curso pode diminuir o protagonismo americano
Por mais de uma década, os Estados Unidos viram sua moeda passar por um grande ciclo de valorização. Esse cenário chegou ao limite recentemente, quando analistas começaram a ver uma nova dinâmica entre a moeda norte-americana e seus pares globais.
Processos de desvalorização são cíclicos e já aconteceram outras vezes na história moderna. Mas, desta vez, tudo indica que uma mudança estrutural em curso em um mundo multipolar tende a diminuir o protagonismo americano, segundo economistas ouvidos pelo CNN Brasil Business.
Um dos motivos vistos como principais para acelerar a desvalorização da moeda americana é a posse do presidente eleito nos Estados Unidos, Joe Biden, nesta quarta-feira (20). O novo mandatário promete uma enxurrada de dólares por meio de estímulos na economia. Mas isso está longe de ser ruim, ao menos para os investidores.
Durante o último grande ciclo de valorização do dólar, que começou na crise econômica em 2008, o Dollar Index (DXY) — índice que compara a divisa à de outros países, como iene (Japão), libra esterlina (Reino Unido), dólar canadense (Canadá), coroa sueca (Suécia) e franco suíço (Suíça) — saltou cerca de 45%.
Mais recentemente, a moeda se fortaleceu sob influência do boom de empresas de tecnologia, que atraíram recursos para a bolsa americana, e da política “America first”, que incluiu redução de impostos e repatriação de dinheiro. Desde meados do ano passado, porém, esse ciclo se inverteu. De abril, pior momento da pandemia, até agora, o DXY se desvalorizou 11%, e a expectativa é que não pare por aí.
“O momento agora é de realocação de carteiras de investimento em favor de outras moedas”, escreveu a gestora Kairós Capital em carta divulgada neste mês, na qual alerta para o “enfraquecimento do gigante”, levado, sobretudo pela quantidade de estímulos que a economia americana vem tendo e que não deve cessar tão cedo.
Para ficar claro: quando há injeção de dinheiro na economia, a tendência é que a moeda daquele país se desvalorize. Afinal, quanto maior a quantidade de um ativo (ou moeda, neste caso), menos ele valerá, de acordo com a lei da oferta e da procura.
Nesse sentido, é esperada uma nova enxurrada de dólares, depois que o presidente eleito Joe Biden anunciou na semana passada um pacote trilionário de estímulo fiscal direcionado, principalmente, às famílias americanas.
Em discurso nesta terça-feira, Janet Yellen, indicada por Biden à secretaria do Tesouro dos EUA, reiterou a improtância do socorro e disse que “responsabilidade fiscal neste momento de crise é oferecer estímulo”. A ex-presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano) também defendeu o aumento dos salários mínimos, proposto no pacote de recuperação da crise.
Para além da intenção do novo mandatário de resgatar a economia da crise do coronavírus, a expectativa do mercado financeiro é de que, com a chamada “onda azul” (alusão à cor do partido democrata), a política econômica do novo governo seja ainda mais pró-gastos, “o que pode ajudar a acelerar o crescimento — mas também pode aprofundar a desvalorização do dólar e pressionar para cima a inflação”, escreve a consultoria LCA em relatório divulgado na semana passada. Na cartilha econômica, inflação significa a perda de compra de uma moeda.
Nesse sentido, pesa para o dólar a trajetória acendente da dívida pública, que já bateu 130% do Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA — terceira maior entre países desenvolvidos, perdendo apenas para o Japão e Itália — e do déficit americano.
No relatório da Kairós, a gestora cita um estudo feito em setembro pela Universidade da Pennsylvania, com base no programa de campanha democrata, que estima uma elevação líquida das despesas federais em US$ 2 trilhões no período 2021-2030. “Isso implica continuidade dos déficits fiscais e elevação gradual da relação dívida/PIB”, diz a gestora, outro motivo que faz com que investidores procurem diversificar sua carteira.
O FMI estima que a dívida bruta americana deverá seguir numa trajetória de alta pelo menos até 2025. “Se confirmados tais prognósticos, trata-se possivelmente de mais um fator que contribui para o enfraquecimento do dólar”, diz a gestora.
Além da maior quantidade de dólares no mercado e da dívida crescente americana, a queda dos juros nos EUA é outro fator desfavorável para a moeda, já que faz com que a vantagem da divisa em relação a outras de grande liquidez seja reduzida. Na semana passada, o Fed disse que o momento de aumentar os juros não está “nem um pouco próximo”.
“O diferencial de juros que os EUA tinham com o resto do mundo acabou, e agora todo mundo tem juros zero, não vale mais a pena colocar dinheiro nos EUA pensando nessa vantagem, e o crescimento econômico diferencial também vai mudar”, diz Luiz Eduardo Portella, sócio-fundador da Novus Capital.
Segundo o economista, o mundo deve ver agora um período de recomposição de estoques que vai beneficiar um crescimento mais uniforme.
Esse processo deixa outras economias mais atrativas, com destaque para Ásia, Europa e os próprios emergentes, que devem se beneficiar com a demanda por commodity
Luiz Eduardo Portella, sócio-fundador da Novus Capital
A China, que estava prevista para ultrapassar os EUA como a maior economia do mundo em 2033, deverá atingir o posto cinco anos antes, segundo relatório do Centro de Pesquisa Econômica e Empresarial (CEBR, na sigla em inglês) publicado em dezembro. A “gestão hábil da pandemia” do país asiático contribuiu para isso, atesta o grupo de estudo inglês, enquanto os americanos mantêm o maior número de mortes pela Covid-19.
Enquanto isso, os países europeus anunciaram no ano passado uma importante união fiscal, com a aprovação de um pacote de 750 bilhões de euros para recuperar a economia do bloco. Essa consolidação fiscal, juntamente à união comercial e monetária existente, tem tudo para deixar o grupo ainda mais forte, ameaçando a hegemonia dos EUA.
“O maior protagonismo do euro e a participação cadente dos EUA no PIB mundial — em especial para a China — naturalmente implicariam em perda adicional da participação do dólar como moeda de reserva e de transações mundiais”, defende a Kairós.
“Se todos os grandes fundos de pensão do mundo resolverem reduzir em 10% sua exposição ao dólar, o que seria razoável, já faz um movimento global de enfraquecimento bastante relevante”, diz Portella. “Tem tudo para a gente entrar num ciclo de dólar fraco que vai durar vários anos.”
E o Brasil com isso?
Parece ser geral a previsão de que o dólar vai permanecer contido diante de um crescimento global sincronizado, de um aumento dos preços das commodities e do arcabouço de meta de inflação média do banco central americano. Mas será que isso vai tirar um pouco da pressão que o câmbio brasileiro vem sofrendo? Depende.
A mesma lógica que vem fazendo grandes investidores reduzirem exposição ao dólar principalmente nos últimos meses leva boa parte deles apostarem em países emergentes. Sobretudo nos exportadores de commodities, pela valorização desses ativos, como é o caso do Brasil.
“Temos visto um pouco desse movimento com mais força desde novembro no Brasil. O dinheiro que entra na bolsa é de classe de ativo, de pessoas que resolveram diversificar em emergentes. Não é um dinheiro que é do país especificamente”, diz Portella.
Os quase R$ 90 bilhões em saldo negativo estrangeiro da bolsa brasileira até setembro de 2020 foram sensivelmente reduzidos nos últimos três meses do ano, pegando carona nesse movimento que beneficia emergentes em detrimento de mercados desenvolvidos.
O real, que se desvalorizou 29% em relação ao dólar no ano passado, pode ser beneficiado nesse cenário, segundo o economista.
Não digo que vamos voltar a ter o dólar cotado a R$ 3, mesmo porque, agora, temos juros de primeiro mundo, mas a moeda americana acima de R$ 5 está muito fora do lugar se olharmos para o fundamento de fluxo, que é o que importa
Portella, Novus Capital
Mas o cenário fiscal ainda dificulta uma valorização mais relevante do real, assim como a reação errática do país ante o avanço do número de casos de Covid-19.
“(A questão da maior atratividade das commodities) é uma peça que se encaixa no quebra-cabeça para o Brasil, e que não vem ajudando o câmbio, o que traz preocupação. Várias coisas têm apontado para o fortalecimento do real, e isso não tem ocorrido”, diz Tony Volpon, ex-diretor do Banco Central (BC) e estrategista-chefe da WHG, gestora recém-criada por ex-executivos do Credit Suisse. “Uma peça central para que haja essa apreciação benéfica é o encaminhamento da questão fiscal, mas o BC também tem que fazer sua contribuição e subir os juros, o que também ajudaria o câmbio”, diz.
A expectativa de maior deterioração das contas públicas em meio a juros baixos e atraso das reformas estruturantes fez o Société Générale entrar com recomendação de compra de dólar em dezembro, prevendo que a moeda, que fechou a semana passada a R$ 5,30, chegue a R$ 6 reais neste ano.