Acordo Mercosul-UE traz alívio em meio guinada protecionista, dizem especialistas
Globalização perdeu força política nos últimos anos, analistas explicam fenômeno
Após 25 anos de negociações, o acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia (UE) parece estar em vias de ser enfim anunciado.
A abertura entre as partes, porém, se dá em um momento no qual a tendência geopolítica tem apontado para outro lado.
De um lado do Atlântico, o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, visualiza para seu mandato tarifas de importação mais elevadas, com o intuito de proteger a indústria norte-americana. Na outra ponta do Oceano, entre os próprios países que integram a UE, agricultores protestam e pressionam seus respectivos governos a barrarem o acordo.
Essa guinada ao protecionismo não vem de agora. Desde a saída do Reino Unido do bloco europeu em 2020 – movimento conhecido como Brexit -, cada vez mais tem crescido nos países uma lógica isolacionista e anti-globalização.
Em meio a esse cenário, o acordo Mercosul-UE se consolida como “um respiro para o que é possível manter de uma era de globalização. Ela é uma tábua de salvação para os dois lados”, aponta Leonardo Trevisan, professor de Relações Internacionais (RI) da ESPM e mestre em História da Economia.
Carolina Pavese, doutora em RI pela London School of Economics, ressalta o ponto ao indicar que a assinatura é uma vitória para dois blocos comerciais que se encontram em um momento de crise de legitimidade.
Enquanto o Mercosul enfrenta barreiras para coordenar a integração regional; a UE ainda enfrenta os rescaldos do Brexit, da desaceleração da economia alemã, da guerra na Ucrânia e colapsos de governos, como o observado na França nesta semana.
“Finalizar esse acordo reforçaria a importância desses laços diplomáticos, da capacidade de negociação e de achar um ponto em comum entre países tão divergentes politicamente falando”, diz Pavese.
Globalização
A ideia de aproximação entre os países ganha força nos anos 90 após o colapso da União Soviética e, consequentemente, o final da Guerra Fria. O cenário geopolítico sai da bipolaridade capitalista e socialista em busca da integração regional para crescimento mútuo entre as nações.
“Com o fim da Guerra Fria, tem uma nova onda de regionalismos e acordos comerciais que vão ficando mais fortes”, explica Carolina Pavese.
“A proposta de globalização surge ao final dos anos 90 e ganha força na agenda política. À época, ela era usada como sinônimo de progresso, se depositava na globalização grandes esperanças de um crescimento econômico”, conclui a doutora pela London School of Economics.
Materialmente falando, o globo chegou em um ponto de ruptura de barreiras e de maior conexão, até por conta das inovações tecnológicas que surgiram e foram rapidamente compartilhadas nesses últimos 30 anos. Olhando para esse cenário, Pavese enfatiza que “o mundo está mais interdependente agora”.
Foi em meio a esse cenário que em 1999 nasceram as tratativas para a aproximação entre o Mercosul e a UE. O processo, porém, enfrentou uma série de percauços ao longo do caminho.
Desglobalização
O processo recente de ruptura é fruto de uma confluência de fatores sociais, políticos e econômicos que, apesar das peculiaridades de cada país, se repetem como padrões em alguns lugares, segundo os especialistas ouvidos pela CNN.
Deborah Bizzarria e Magno Karl, respectivamente coordenadora de políticas públicas e diretor-executivo do movimento Livres, destacam:
- O aumento na percepção de risco das cadeias globais: segundo a economista e o cientista político, a crise financeira internacional de 2009 abalou a confiança no modelo de globalização; e a desaceleração econômica durante o Covid-19 teria fortalecido a percepção de que a dependência excessiva de cadeias globais de suprimentos é arriscada. “Mesmo que as vacinas que nos salvaram do coronavírus tenham sido frutos diretos da globalização, a interrupção de cadeias produtivas, em especial de produtos e tecnologias consideradas essenciais, reforçaram a ideia de que há produtos que devem ser produzidos localmente”, afirmam;
- Mudanças geopolíticas: a tensão entre os Estados Unidos e a China; e a guerra na Ucrânia trouxeram preocupações sobre a segurança econômica, e a avaliação de que seria necessário reduzir a dependência ante determinados países em setores estratégicos, como semicondutores e energia;
- Reações populistas à percepção de aumento das desigualdades: as promessas de desenvolvimento da globalização não atingiram algumas camadas da população dos países. “A percepção de que outros países ou grupos ganharam mais com a globalização gerou pressão política por intervenções protecionistas e industrialização local, que entraram no topo das prioridades dos políticos para os próximos anos”, pontuam os analistas do Livres;
- Políticas industriais coordenadas: Bizzarria e Karl apontam que países tem competido entre si para oferecer subsídios mais atraentes às indústrias. Dentre as nações, eles listam Estados Unidos, União Europeia, China, Índia e Japão.
Pavese ressalta o ponto levantado pelos dois, e indica que “busca-se no nacionalismo uma solução, como se a globalização fosse a única culpada pelos problemas internos dos países”. Segundo a doutora em RI, esses movimentos protecionistas impactam tanto do ponto de vista político quanto do ponto de vista prático.
“O protecionismo comercial, da forma como vem sendo desenhado por Trump, cria barreiras que vão restringir fluxos comerciais e encarecer artificialmente parte da cadeia global de valor, onerando o consumidor. Por outro lado, o discurso impulsiona a xenofobia e a agenda da extrema direita”, conclui Pavese.
Porém, ela reforça que a globalização “não secou”, e que o mundo, apesar desse movimento de desglobalização, segue fortemente conectado.
“Se formos analisar a economia, as relações comerciais e as próprias cadeias de valor, a gente está num processo muito mais integrado do que 20 anos atrás, 30 anos atrás”, aponta a doutora em RI.
Acordo Mercosul-UE
Países como Irlanda e Bélgica têm sido marcados por protestos de agricultores contrários ao acordo. Já na França, e mais recentemente na Polônia, o próprio governo tem sido mais abertamente contrário ao tratado. No caso francês, autoridades o apontam como inaceitável.
Mas, com a assinatura do pacto, reforça-se que a integração entre as partes tende a fortalecer alguns de seus setores.
“O acordo se consolida de um processo em que o mundo enfrenta significativa desglobalização. Ele vai andar porque a indústria europeia olha para a concorrência e capacidade de investimento nos Estados Unidos, e nota que, com as tarifas planejadas, não estará mais lá no futuro próximo”, pontua Leonardo Trevisan.
“Num mundo em desglobalização, indústrias atrasadas e agronegócios avançados casam seus interesses. O acordo sai porque no momento interessa para os dois lados, salvo exceções. As pressões são muito fortes e reais, não só o trumpismo assusta, mas a voracidade da indústria chinesa também”, conclui o professor da ESPM.
Pavese ressalta o ponto ao notar que a Europa fica “entre a cruz e a espada” com os EUA e a China, seu maior parceiro comercial e uma de suas principais fornecedoras de insumos básicos.
“A assinatura simboliza que a União Europeia ainda é um ‘ator de peso internacional’, num contexto prestes a ficar muito sombrio para o comércio entre os países”, conclui a doutora em RI.