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    50 anos pós-Bretton Woods: dólar (ainda) reina em meio à febre de criptomoedas

    Acordo serviu para recuperar economias após a Segunda Guerra e foi boicotado pelos EUA, que agora enfrenta sucessivos testes de estresse com economia digital

    John Keynes em Bretton Woods, em 1944
    John Keynes em Bretton Woods, em 1944 Foto: Universal History Archive/Universal Images Group via Getty Images

    Paula Pacheco, colaboração para a CNN

    O dia do não dos Estados Unidos ao Acordo de Bretton Woods completa neste domingo meio século. Em 15 de agosto de 1971, o país decidiu abandonar a relação entre o dólar e o ouro, adotada no pós-guerra por 44 nações, entre elas o Brasil.

    O conjunto de regras havia sido assinado em 1944, durante encontro na cidade americana que deu nome ao acordo, no estado de New Hampshire, com o objetivo de recuperar as economias internacionais, esgotadas depois da Segunda Guerra Mundial

    Entre os acertos, a adoção do dólar com valor fixo em ouro e as outras moedas com valor fixo em dólar, mas com a possibilidade de se valorizarem um pouco mais. 

    “Era algo que fazia sentido no pós-guerra porque a Europa estava destruída e os Estados Unidos eram o país mais produtivo do mundo e contavam com um grande superávit com o mundo. Foi a forma encontrada para que as outras economias se ajustassem com variações cambiais pequenas”, explica Leonardo Weller, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Ph.D em História Econômica pela London School of Economics. 

    Com o tempo, o dólar passou a ficar apreciado, com a economia americana mais cara. A Europa, por sua vez, chegava à década de 1960 já reconstruída e o mundo via países como a Alemanha e o Japão em posição de maior competitividade. O superávit americano virou déficit. 

    Após 50 anos, o mundo vive um novo tensionamento. Os países sofrem para se recuperar dos efeitos da pandemia e a situação dos Estados Unidos tem tirado o sono dos Bancos Centrais das principais economias do mundo. 

    A preocupação se deve ao fato de os EUA terem abraçado a estratégia de injetar um grande volume de recursos para estimular a retomada do crescimento econômico, comprometido pelos efeitos do novo coronavírus.

    O financiamento do plano de recuperação tem sido feito graças à emissão de dólares, que atingiu volumes históricos. Soma-se a isso a preocupação com a pressão inflacionária (o maior índice desde 1982) e os juros (entre 0% e 0,25% ao ano). 

    Por essa combinação de fatores, economistas avaliam que a economia global possa viver um novo ponto de inflexão, a exemplo do que aconteceu quando o presidente Richard Nixon (1969-1972) provocou o naufrágio de Bretton Woods.

    Os defensores dessa tese avaliam que as atuais condições da economia global, em particular a americana, poderiam provocar uma nova mudança de direção, a exemplo do que aconteceu em 1971. 

    Um dos efeitos seria a expansão dos ativos digitais, com destaque para os criptoativos. Hoje, há cerca de 6.000 ativos em negociação. O primeiro e mais conhecido é o bitcoin, lançado em meados de 2008.

    Outra parte dos especialistas descarta a possibilidade de o dólar perder o protagonismo, analisa que a crise é temporária e que as moedas da economia digital sempre vão representar apenas um nicho para os investidores. 

    Criptomoedas rivalizam com o dólar?

    Dólar Bitcoin
    Foto: Dado Ruvic/Reuters

    Para Weller, da FGV, apesar das mudanças desencadeadas pela pandemia, o dólar segue no seu papel de moeda internacional e não há perspectiva de uma virada de mesa favorável aos criptoativos. 

    “O que manda na economia monetária é a economia real, com a produtividade da indústria, do comércio. As criptomoedas, independentes do Estado, não têm a menor condição de rivalizar com o dólar.”

    Ainda segundo Weller, “é impensável que, com sua operação independente de governos, [as criptomoedas] sejam de reserva de valor internacional, com poupadores e fundos de pensão colocando todo dinheiro nesses ativos”. 

    As mudanças causadas pela pandemia, de acordo com Weller, ainda estão sendo digeridas e isso torna mais desafiador apontar quais serão os novos caminhos. 

    No entanto, o especialista lembra que, desde a crise financeira de 2008, os Estados são “gigantes”, num papel indutor da economia que se repete agora com a disseminação do coronavírus. 

    “A receita para a retomada é a mesma que vimos em 2008, com o aumento do déficit, da dívida, e o Fed sem aumentar os juros”, diz. 

    De qualquer forma, investidores institucionais têm olhado com mais simpatia para os criptoativos. Um dos efeitos é a valorização dos ativos. O bitcoin, por exemplo, valia em 1º de janeiro de 2020, antes do início da pandemia, R$ 28.920. Um ano depois, a cotação chegou a R$ 152.360. 

    Na sexta-feira (13), o valor alcançado foi de R$ 234.800. Recentemente, a tradicional gestora de recursos Rothschild Investment Corp, detentora de um patrimônio estimado em cerca de US$ 1 trilhão, teria quadruplicado sua exposição ao bitcoin desde abril. 

    O aumento das adesões aos criptoativos também é uma realidade fora do ambiente financeiro. No início do mês, o Grupo Philipp Plein, voltado ao mercado de luxo, divulgou ser o primeiro grupo de moda do mundo a aceitar 15 tipos diferentes de criptomoedas, como bitcoin e ethereum, para compras nas lojas físicas e no seu e-commerce.

    Ethereum e bitcoin
    Foto: Yuriko Nakao/Getty Images

    O bilionário Elon Musk já flertou e especulou com os ativos da economia digital. Um de seus negócios, a fabricante de carros Tesla, depois o empresário recuou e fez com que a cotação perdesse força

    Recentemente, ele declarou que Tesla, a SpaceX (que atua no turismo espacial) têm o ativo em caixa e que poderá voltar a aceitá-lo para a aquisição de veículos.

    Até Lionel Messi, maior jogador em atividade no futebol mundial, aceitou trocar o Barcelona pelo Paris Saint-Germain (PSG) contando com a criptomoeda do clube francês, os chamados fan tokens, como parte do pagamento. 

    Uma das razões do interesse crescente é a procura por ativos com maior potencial de valorização. João Canhada, CEO da Foxbit, uma das maiores exchanges de criptoativos do país, acrescenta. 

    “Existe uma desconfiança quanto aos governos e as políticas econômicas por causa da impressão desenfreada de dinheiro e a inflação. Mas é bom lembrar que esse não é o tipo de investimento para todo mundo. Quem estiver confiante quanto ao que cada governo vai fazer deve manter a relação com os eu banco. Mas o investidor que sabe como esse mercado funciona vai tentar proteger seu patrimônio.”

    Canhada, no entanto, é cauteloso quanto ao futuro da convivência entre a moeda americana e o universo digital. “Afirmar que haverá uma substituição do dólar pelas criptomoedas é algo forte, mas que elas vão complementar a moeda eu não tenho dúvida”, acredita.

    João Marco Paulo da Cunha, gestor de portfólio da Hashdex, gestora de recursos especializada em criptoativos, também não acredita o dólar sofrerá com a ameaça desses ativos, mas não esconde o otimismo. 

    “O bitcoin não vai engolir as moedas fiduciárias. Por outro lado, veremos o crescimento consistente de usuários que vão aderir a ativos que são resistentes a confiscos, com propriedade transnacional, sem limite geográfico.”

    Perda de transparência no fluxo do dinheiro

    A adesão massiva às moedas da economia digital não parece ser viável na análise de Mauricio Godoi, economista e professor da Saint Paul, que alerta para o temor dos governos de perda de transparência no fluxo migratório do dinheiro.

    “Depois da queda das torres gêmeas, em 2001, o que se viu foi um forte movimento multilateral entre bancos centrais para dar maior transparência às transações e assim evitar que recursos sejam destinados ao financiamento do terrorismo. Com as criptomoedas, a questão reaparece em países onde não é possível rastrear esses recursos. Por isso, a maioria dos bancos centrais não estão permitindo que essa seja uma moeda usual, mas sim utilizada pelos investidores qualificados”, afirma Godoi. 

    A cautela, no entanto, não significa que as novas tecnologias não tenham potencial na visão dos governos. Tanto é assim que vem ganhando força a discussão sobre moedas digitais emitidas pelos bancos centrais. 

    No Brasil, o Banco Central fala da possibilidade de isso vir a acontecer já em 2022, com o lançamento do real digital, uma extensão da moeda física. 

    A distribuição ao público do real digital será intermediada por instituições custodiantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB), como os bancos. 

    Em junho, Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central deu sinais de que a entidade monetária vai se esforçar para descolar a novidade das criptomoedas. “Esses são ativos arriscados, não regulados pelo BC e devem ser tratados com cautela pelo público”.

    Os Estados Unidos ainda estão em fase de discussão sobre a sua moeda digital, diferentemente da China, que já lançou seu ativo. 

    Há cerca de um mês, durante um depoimento aos integrantes do Comitê de Serviços Financeiros dos Estados Unidos, Jerome Powell, presidente do Fed, afirmou que existe um estudo em andamento para medir a sua viabilidade, mas nada garante que o lançamento aconteça, mesmo com a pressão internacional. 

    Porém, Powell deixou claro que, se os EUA adotarem uma moeda digital soberana, um dos efeitos poderá ser a obsolescência dos criptoativos. 

    “Um dos argumentos a favor é que, se houvesse uma moeda digital dos EUA, você não precisaria de stablecoins (criptomoedas pareadas em algum ativo estável ou cesta de ativos como forma de controlar a volatilidade) ou de criptomoedas.”

    Esse pode ser um dos paralelos entre o fim do Acordo de Bretton Woods e o que o mundo vive agora. O esforço que a China está fazendo em relação a sua moeda digital pode mudar muita coisa, avalia Weller, assim como aconteceu com a Alemanha e o Japão durante a vigência do acordo, quando alcançaram os EUA e ganharam vantagens competitivas (o que é chamado em economia de catch up). 

    “A diferença é que agora os EUA estão em vantagem, porque ali está o berço tecnológico, é onde estão as maiores empresas de tecnologia”, aponta o professor da FGV.