José Manuel Diogo

Coluna

José Manuel Diogo

O homem de lá e de cá. Presidente da APBRA, diretor da Câmara Luso Brasileira em Lisboa. Professor universitário no IDP em Brasília. Escritor. Especialista em relações luso-brasileiras

O mundo não perdeu um papa, perdeu uma referência de humanidade

por: José Manuel Diogo
Papa Francisco  • 14/12/2022REUTERS/Guglielmo Mangiapane

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Francisco morreu. E o que se perdeu com ele não foi apenas um homem, um pontífice, uma liderança religiosa. O que se perdeu, talvez de forma irreparável, foi uma referência de humanidade. Em tempos de vale tudo informacional, de guerras sem princípios, de economias que negociam o inegociável, de algoritmos que substituem consciências, a figura do papa Francisco — ainda que enfraquecida institucionalmente — persistia como um bastião ético. Ele não era um imperador da fé, era um espelho do humano que insiste em não desaparecer.

Sim, seu papado coincide com o esvaziamento de poder da Igreja. Sim, sua voz foi muitas vezes abafada, mal compreendida, diminuída. Mas é exatamente aí que reside sua grandeza. Francisco representava a tentativa derradeira de manter viva a chama do cuidado, da escuta e da presença. Desde 2013, quando assumiu, o mundo se tornou menos compassivo, mais brutal, mais cínico. E ele, com gestos simples — beijar os pés de migrantes, lavar os pés de presidiários, escrever sobre o planeta como uma casa comum — tentou lembrar que ser humano ainda era possível.

Quando Francisco foi eleito, o mundo digital ainda era marcado por uma promessa de conexão e esperança: o Facebook era uma rede de amigos, o Twitter uma arena de ideias e o Google ainda sugeria que “não fosse mau”. Havia deslumbramento com a Primavera Árabe e entusiasmo com o potencial emancipador das redes.

Em pouco mais de uma década, esse cenário se inverteu brutalmente. Em 2025, o papa deixa um mundo tomado por bolhas informacionais, manipulação algorítmica, guerras cognitivas e desinformação em escala industrial. As redes sociais tornaram-se campos de batalha simbólicos onde a verdade é subjetiva e a mentira, lucrativa.

A tecnologia, que parecia servir à aproximação entre os povos, passou a servir a dinâmicas de dominação, ressentimento e fragmentação. Francisco entra num mundo esperançoso e sai de cena num planeta saturado, onde as plataformas moldam as emoções humanas mais do que qualquer púlpito — e onde o desafio da Igreja já não é apenas evangelizar, mas lembrar que o real ainda existe.

Agora, a Igreja está diante de um dilema terrível, que se repete como tragédia e advertência: recolher-se para dentro, protegendo-se de um mundo que não compreende nem quer compreender; ou abrir-se com risco e coragem para fora, indo ao encontro de um mundo que já não sabe o que é referência ética. Francisco tentou o segundo caminho, mas talvez tenha sido esmagado pela própria complexidade da época. Mesmo assim, indicou a direção — não para dentro, mas para a rua, para a margem, para o diálogo.

O sucessor que vier — seja Zuppi, Tagle, Parolin ou outro nome inesperado — não herdará apenas a cátedra de Pedro. Herdará o último suspiro de uma tentativa de humanização global. E terá que responder à pergunta que hoje ecoa em todos os continentes: ainda é possível uma autoridade moral no século da indiferença?