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    Ensino superior não garante renda maior para empreendedores negros, diz pesquisa

    Quase 85% dos empreendedores negros têm renda familiar menor do que seis salários mínimos, ainda que a maioria tenha curso superior

    Raphael Coraccini, colaboração para CNN Brasil Business, em São Paulo

    Os esforços de empreendedores negros nos bancos das universidades não estão sendo recompensados com ganhos financeiros em seus negócios. Um levantamento recente conduzido pelo Movimento Black Money aponta que mais de 60% dos empreendedores negros têm ensino superior, porém, apenas 16% alcançam renda familiar superior a seis salários mínimos.

    A pesquisa, realizada em parceria com a aceleradora Inventivos e a empresa de tecnologia RD Station, mostra a face do racismo estrutural que impede que empreendedores negros acessem um patamar superior de renda mesmo quando os quesitos educacionais pedidos pelo mercado são cumpridos.

    Nina Silva, criadora do Movimento Black Money, diz que, diferentemente do que se pode imaginar, a educação não é a grande barreira que separa os negros de oportunidades de ascensão social. “Independentemente de darmos a contribuição mais que necessária, nós não temos o retorno financeiro nem o reconhecimento social a partir da educação.”

    A pesquisa também aponta que mais da metade dos empreendimentos liderados por pessoas negras são de venda de produtos e serviços para pessoas físicas (business to consumer – B2C), o que revela a dificuldade de os empreendedores negros entrarem na planilha de fornecedores das grandes companhias. Apenas 11% dos empreendimentos fundados por negros vendem produtos para outras empresas.

    A presença mais frequente de rostos negros na publicidade e os programas de trainee e estágio voltados apenas para jovens negros são um passo importante. Porém, Nina destaca que os principais beneficiários dessas estratégias continuam sendo as empresas tradicionais, que concentram quase todo o bolo dos R$ 1,73 trilhão movimentados anualmente pelo consumo de pessoas negras no Brasil. “Esse dinheiro não chega aos empreendimentos negros”, diz Nina, que exorta as empresas a inserirem fornecedores negros ao longo da cadeia produtiva.

    Além da falta de acesso às compras de grandes empresas nacionais ou estrangeiras, o empresário negro encontra dificuldades maiores de acesso a crédito. Mais de 40% dos entrevistados relatam que suas maiores dificuldades estão relacionados ao processo de concessão de empréstimos, em que um empreendedor negro encontra três vezes mais dificuldade do que um empreendedor branco.

    Necessidades ignoradas

    Diante da recusa do mercado em receber os empreendedores negros e fomentar seus negócios, boa parte das iniciativas, segundo a líder do Black Money, acaba sendo voltada para serviços e produtos para outras pessoas negras, que também são excluídas como consumidoras pelo mercado tradicional. “São os casos dos tratamentos para a pele negra e cabelos crespos, ou mesmo lugares que permitam que a pessoa negra entre sem ser julgada pela sua capacidade de pagar ou não por um serviço”, diz Nina.

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    Maurício Delfino (45) é um dos empresários que têm apostado no atendimento de necessidades das pessoas negras. Ele é criador da marca DaMinhaCor, que vende toucas de cabelo para uso industrial, voltadas para a força de trabalho feminina e de cabelo crespo que tem dificuldades de usar os equipamentos de proteção desenvolvidos para cabelos lisos. Mas o produto que lançou a marca com bastante barulho foi a touca de natação para cabelos afro.

    Delfino conta que, em 2017, meses antes de inaugurar a empresa, recebeu a ligação de uma mãe que precisava de uma touca para que a filha de 12 anos, Sofia, participasse de um campeonato de natação pela escola sem que precisasse desfazer as tranças. A história viralizou. 

    Sofia ganhou a medalha de ouro no revezamento 4 por 25 metros livres, e outra de prata, nos 25 metros livres. Depois da vitória, a mãe de Sofia ligou para Delfino para agradecer. “Ela me disse que ‘a medalha não foi mais importante do que essa menina poder entrar no ônibus com os amiguinhos. O senso de pertencimento que a touca deu à minha filha foi mais importante que a medalha’. E essa história se repete por vários lugares do Brasil, com um monte de gente”, diz o empresário.

    Antes de lançar sua marca de toucas e produtos afro, Delfino trabalhou durante mais de 20 anos dentro de empresas como Siemens, CSN e Comgás até que, com uma vida financeira estável, resolveu empreender. “Eu sou uma exceção, entrei nesse mundo por opção, quando a grande maioria entra por necessidade”.

    Ainda adolescente, Delfino foi incluído num programa de jovem aprendiz na Siemens, o que mudou a sua trajetória. “Eu cresci em Carapicuíba (município da região metropolitana de São Paulo) e para entrar no caminho errado bastava que eu abrisse a porta. Entre os 13 e 14 anos, eu estudei para o programa e entrei na Siemens. Juntei ajuda com força de vontade, porque sozinho a gente não chega a lugar nenhum”, diz.

    O mesmo ambiente corporativo que viria a dar uma boa carreira a Delfino também trouxe uma coleção de experiências desagradáveis. “Quando eu caí dentro da empresa foi um choque e, ao longo da vida, você sofre as coisas mais terríveis que você pode imaginar. Enquanto eu estive no mundo corporativo, recebi afrontas todos os dias. Isso vai mostrando como a gente, como povo negro, sofre, e como a gente tem que ficar se provando”, conta.

    Sem alisamentos, sem medo da água

    O empresário conta que optou pelo lançamento de toucas de natação para cabelos afro pelo caráter simbólico da peça. Ele diz que, na infância, via a cozinha da sua casa se transformar em um salão de beleza todo domingo após o almoço. “Eram de 15 a 20 mulheres alisando o cabelo umas das outras. Eu cresci vendo as mulheres da minha família alisando o cabelo com uns pentes de ferro que esquentavam na boca do fogão.”

    Delfino conta que o alisamento dos cabelos era um ritual relacionado à sociabilização. “Na época, eu não era inconformado, mas curioso. Eu perguntava, ‘por que vocês fazem isso?’ E sabe quais eram as respostas? ‘Se eu não fizer isso, minha patroa não me deixa trabalhar’ ou ‘eu vou procurar emprego essa semana e preciso estar bonita’. Olha a frase! Você não poderia ser quem você é, caso contrário, você não é aceito”, detalha o empresário.

    Além disso, ele diz que fornecer toucas para que pessoas negras possam participar de um esporte que historicamente exclui negros tem um peso importante. “A relação da população negra com o ato de nadar é algo muito complicado se você pensar na forma violenta que fomos trazidos para o Brasil. Quando o navio tinha excesso de peso, jogavam o negro doente para fora. Era melhor (para o traficante) jogar no mar e pegar o seguro do que chegar com ele no Brasil e não conseguir vender”, conta.

    Delfino diz que a touca foi o produto emblemático que ele procurava para vencer a barreira da cor e também de classe, já que, segundo o empresário, a natação é um esporte praticado majoritariamente por brancos de renda média ou alta. Nessa linha, ele também lançou chapéus de formatura adaptados para cabelos volumosos que garantem que uma pessoa afro possa manter o seu penteado em um dos momentos mais marcantes da vida.  

    Hoje, a DaMinhaCor exporta toucas de natação para Portugal, Estados Unidos, Moçambique e França e está entre os fornecedores da Mondelez, da Jundiá e de outras empresas do ramo alimentar e também de hospitais para a venda de toucas descartáveis.  

    Empreendedorismo como fuga

    Depois de mais de duas décadas no mundo corporativo e conhecendo bem os desafios de quem tenta ascender num ambiente tradicional, Delfino elogia o trabalho das empresas que criam programas para absorver a mão de obra negra, mas afirma que o ambiente poucas vezes é preparado para receber essas pessoas. “As empresas estão num movimento muito interessante de inclusão, mas não vejo um trabalho de conscientização do time para receber essas pessoas, e falo de negros, mulheres, 50+, LBGTQIA+. Quem consegue entrar, geralmente, encontra um ambiente bastante hostil”, ressalta.

    O fracasso das empresas em manter e desenvolver talentos negros em seus quadros de funcionários pode fortalecer o discurso de superioridade branca, jogando trabalhadores negros para o desemprego e para um consequente empreendedorismo por necessidade.

    É o caso de Katiuscia Ribeiro, professora de filosofia, que mantinha empregos no ensino público e privado até 2016, quando foi demitida da escola particular e precisou encontrar novas formas de renda para complementar o salário de R$ 1.500 como docente da rede estadual de ensino.

    Após demissão, Katiuscia Ribeiro se tornou palestrante e produtora de workshops
    Após demissão, Katiuscia Ribeiro se tornou palestrante e produtora de workshops
    Foto: Arquivo pessoal

    Para a professora, que hoje coordena um grupo de estudo em Filosofia Africana na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o empreendedorismo surgiu como emergência. “O racismo nos coloca numa situação que não pensamos no empreendedorismo como a ação de abrir uma empresa para ganhar dinheiro. As pessoas negras começam a empreender a partir de uma necessidade. Eu precisava me sustentar e comecei a dar cursos em 2017”, explica.  

    Atuando hoje como palestrante em universidades e produtora de workshops e treinamentos para empresas e personalidades do mundo artístico, Katiuscia utiliza, principalmente, o poder catalisador das redes sociais, que a permitiu alcançar pessoas fora do âmbito acadêmico.

    Mulheres negras como Katiuscia são maioria entre os afroempreendedores, 61,5%, segundo o levantamento da Black Money. Porém, esse empreendedorismo negro e feminino é majoritariamente composto por serviços domésticos, herança ainda de um Brasil Colonial. “As mulheres negras empreendem desde o período escravocrata, enquanto escravizadas de ganho por seus labores na cozinha, seu conhecimento artesanal e outras capacidades que eram exploradas pela família do engenho na área comercial”, explica Nina.  

    A criadora do Movimento Black Money destaca que a mulher negra segue atuando principalmente na área de cosméticos, cuidados e na área alimentícia, “o que é fruto de uma cultura africana de cuidados e de alimentos, do que nós conseguimos manter desde quando fomos trazidas para cá, mas também é fruto da cultura escravocrata dessa mulher negra estar a serviço na cozinha ou para limpar a casa e cuidar da família branca”, explica.

    Mistificação do termo “empreender”

    Nina alerta ainda sobre a mistificação que o termo empreendedor traz, ocultando, em alguns casos, relações precárias de trabalho. “Tem um levantamento que diz que mulheres negras empreendem mais em serviços domésticos, que é, na verdade, um lugar de precarização e não de empreendedorismo”, alerta ao mencionar a pesquisa de 2019 do Sebrae que trata as empregadas domésticas como “donas de negócios” e “empreendedoras” por terem um CNPJ por meio da figura jurídica do microempreendedor individual (MEI).  

    Ao final de 2020, enquanto o número de trabalhadores desempregados subia para a faixa dos 14%, o número de negócios em funcionamento no país registrados como MEI subiu 8,4%, com quase 57% dos CNPJs do país registrados como empresas de uma pessoa só, fruto dessa corrida por empregos informais. “A precarização do trabalho é o maior fator hoje para o crescimento desse chamado empreendedorismo, que não dá todas as garantias que a lei ainda garante ao trabalhador CLT”, explica Nina.

    Mudanças estruturais que reduzam de maneira importante a desigualdade de renda e de oportunidades para os trabalhadores negros, empreendedores ou não, passam necessariamente pelo remanejamento compulsório do dinheiro, diz Nina. “Deveríamos falar de tributação de maneira mais séria, de tributar riqueza, e não somente receita e consumo, para que tenhamos um mercado consumidor empregador e empreendedor sustentável, e não um que sirva apenas para formalização de trabalhadores autônomos e autônomas. Aí vamos mover estruturas”.