Economia dos ‘anos Merkel’ na Alemanha foi marcada por crises e crescimento
Para especialistas, chanceler soube navegar por desafios, mas falhou em políticas ambientais e de inovação
A crise financeira de 2008, a da zona do euro em 2010, a de refugiados na Europa em 2015, a econômica e sanitária com a pandemia de Covid-19. Enquanto alguns líderes mundiais enfrentaram apenas um desses eventos, a chanceler Angela Merkel teve que lidar com todos esses e outros grandes desafios. Com seu último mandato chegando ao fim 16 anos após sua posse, qual o legado econômico que ela deixará para a Alemanha?
Uma forma de responder a essa pergunta é olhando para os números do país. Entre 2005 e 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) da Alemanha cresceu 34%, segundo dados do Banco Mundial, superando as taxas da França, Espanha, Itália e Reino Unido. O país é hoje a quarta maior economia do mundo, perdendo uma posição em relação a 2005.
O desemprego também caiu: 11,01% dos alemães estavam desempregados em 2005, mas eram 4,18% em 2020. A projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI), é que a taxa seja de 4,45% ao fim do quarto mandato da primeira mulher a ocupar o cargo mais alto da Alemanha.
Se considerarmos as desigualdade socioeconômica, o índice Gini era de 0,321 pontos em 2005 (quanto mais próximo de 0, menor a desigualdade). Em 2016, último ano de referência, chegou a 0,319. Já o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) foi de 0,908 para 0,947 (quanto mais próximo de 1, mais desenvolvido), mas o país caiu da 4ª para a 6ª posição no ranking global.
Os indicadores econômicos, porém, não mostram toda a história dos anos Merkel na economia. Especialistas entrevistados pela CNN apontam que a chanceler foi pragmática, sabendo navegar por crises e mitigar os efeitos sobre o país, mas que faltaram investimentos e ações em torno da política ambiental e para inovação tecnológica.
Cenário interno
Antes de falar sobre as ações de Merkel em seus 16 anos no poder, deve-se considerar o cenário em que ela chegou ao topo. Representando a União, uma combinação de dois partidos democratas cristãos de centro-direita, ela derrotou o Partido Social Democrata, de centro-esquerda, e impediu que o chanceler Gerhard Schröder se reelegesse em 2005.
Schröder e seu partido tinham acabado de implementar a chamada agenda 2010. “Era uma série de reformas vista pela maioria dos economistas como um passo importante para melhorar o ambiente de negócios da Alemanha, então foi uma herança que beneficiou muito ela”, afirma Oliver Stuenkel, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas).
“Era um mundo diferente, mais globalizado, financeirizado, então precisou mudar o estado de bem-estar social forte do Alemanha, com corte de gastos e benefícios”, diz Alexandre Queiroz, professor da PUC-MG. Os efeitos positivos na economia a partir de 2005 permitiram, segundo o professor, que Merkel focasse mais em outras questões, em especial externas.
Para Queiroz, Merkel “trouxe para si” a missão de adaptar a economia alemã. “Ela fez isso muito bem, porque apesar das crises a Alemanha ainda é uma economia forte, com uma indústria forte”.
O professor afirma que a Alemanha sempre teve uma “preocupação” com questões de austeridade, herança da crise em 1930, e por isso manteve políticas fiscais e monetárias equilibradas, algo que não mudou com Merkel.
“Ela entrou no poder com um discurso mais liberal, de reformar ainda mais o sistema previdenciário, o sistema de bem-estar social”, diz Queiroz. Entretanto, dois fatores impediram essas ações: o primeiro foi a coalizão de governo com os sociais democratas (de 2005 a 2009 e de 2013 a 2021), que para o professor a levaram “para o centro, incorporando algumas bandeiras deles”. A segunda foi a crise de 2008, que exigiu ações do Estado para evitar que os bancos alemães falissem e para reduzir os efeitos sobre a população.
Entre as medidas de Merkel, Queiroz cita o fortalecimento de pensões, salários, políticas sociais e uma ausência de “reformas drásticas”. Para ele, essas ações de centro foram “um dos segredos para ela ter ficado tanto tempo no poder”.
“Ela explicitamente se referiu à própria política como uma política do centro, então tonou-se necessário adotar propostas de outros partidos mais à esquerda, como elevar o salário-mínimo e acelerar o processo de fim de produção da energia nuclear, propostas dos sociais democratas e verdes, respectivamente”, diz Stuenkel.
As medidas, segundo o professor, dificultaram inclusive as campanhas eleitorais desses partidos, já que “ficou difícil para eles explicarem como um governo deles seria diferente”, o que acabou beneficiando politicamente Merkel.
“[Nesse período] houve um consenso mais forte de que um Estado presente mas sem inviabilizar o funcionamento do mercado era necessário, e isso gera até muito orgulho na Alemanha”, afirma.
Paulo Feldmann, professor da FEA-USP, faz a mesma avaliação. “Eu acredito que não houve uma grande mudança, talvez uma evolução, mas não era uma política tão diferente do antecessor”, diz.
Ele afirma, contudo, que a Alemanha “provavelmente teve algumas das suas melhores taxas de crescimento nesse período. Nos anos 1950 e 1960 estava na reconstrução pós-guerra. Em 1970 e 1980 ainda era um país dividido. Em 1990 estavam nesse processo de reunificação. Foi a partir dos anos 2000 que a situação começou a realmente melhorar”.
O processo de absorção da Alemanha Oriental na década de 1990 é um dos fatores que beneficiou Merkel apontados por Feldmann. “A consolidação da fusão fez com que o mercado consumidor interno aumentasse, então foi o grande pulo do gato”, diz. Apesar de hoje a Alemanha Oriental ainda ser mais pobre que a Ocidental, Feldmann afirma que essas diferenças caíram consideravelmente, com ações tomadas em especial na década de 1990.
A reunificação também ofereceu, segundo ele, uma mão de obra barata para as empresas. Quando ela chegou ao fim, foi substituída principalmente por imigrantes, em especial turcos. Uma das ações mais famosas dos 16 anos de Merkel no poder acabou sendo a recepção de mais de 1 milhão de refugiados sírios em 2015.
“Foi uma medida humanitária e muito boa para a economia, porque a Alemanha precisava de uma mão de obra barata”, diz. Entretanto, a ação não foi popular, e abriu espaço para a extrema-direita, com o partido AfD. Ele conseguiu assentos no Parlamento pela primeira vez nas eleições de 2017.
Stuenkel avalia que Merkel adotou apenas duas bandeiras controversas em todo seu mandato, a primeira foi salvar a Grécia durante a crise do euro, consequência da crise de 2008, e a segunda foi receber os refugiados.
Além das crises de 2008, do euro e dos refugiados, Merkel também foi a responsável por liderar o país durante a pandemia de Covid-19.
“Eles não sacrificaram muito a economia, a doença não foi tão violenta em termos de mortes por habitantes, e isso se deve à liderança dela. O que ela fala, o povo segue, além. é claro, das medidas necessárias. Ela decretou vários lockdowns, que foram seguidos”, afirma Feldmann. O país também forneceu subsídios para empresas e trabalhadores.
Isso não significa, porém, que o governo de Merkel não teve falhas. “A crítica que geralmente é feita é que faltou ser mais visionária, estratégica, faltou uma estratégia de longo prazo que poderia ser importante, até pela relevância da Alemanha”, diz Queiroz.
Feldmann aponta dois campos em que o governo Merkel poderia ter feito: as ações ambientais e políticas de inovação tecnológica.
“Acho que ela falhou na questão ambiental, e as metas de cumprimento de limitar emissão de CO2 não foram cumpridas, isso é um problema sério. Por conta disso, o Partido Verde cresceu muito, porque é um grande ponto de crítica”, afirma.
Já sobre a digitalização da economia, Feldmann diz que Merkel “não criou condições para que a Alemanha fosse uma grande geradora de tecnologia, e talvez por isso a Europa como um todo ficou para trás”.
Apesar de a Alemanha ainda ser referência em indústrias como a automobilística e a farmacêutica, há uma ausência quando se pensa nas gigantes de tecnologia e de internet, algo diferente dos Estados Unidos e da China.
“Essa parte falhou, em incentivar a criação de novas empresas no segmento de alta tecnologia, um fomento ao empreendedorismo. Faltou de condições para se tornar um grande player”, diz.
“Eu acho que ela não conseguiu avançar de forma significativa nisso [política ambiental], em temas como cidades sustentáveis. A indústria automobilística ainda é muito poderosa e soube travar propostas, até defendidas pela Merkel. A Alemanha tem um movimento verde forte, mas não está na vanguarda mundial no tema”, afirma Stuenkel.
Não à toa, um dos partidos que mais cresceram nas pesquisas de intenção de voto para a eleição de 2021 é o Partido Verde. Já o de Merkel, está no segundo lugar, atrás dos sociais democratas. “É a eleição mais aberta na história da Alemanha, não só de não saber quem vai ganhar, mas também de qual vai ser a composição do governo”, diz Stuenkel.
Queiroz, da PUC-MG, não considera que isso possa levar a mudanças significativas na política econômica alemã: “Talvez hoje a Alemanha aceite até políticas mais expansionistas, menos preocupadas com a questão da inflação, mas sempre vai privilegiar a sua indústria”.
De qualquer modo, é esperado que Merkel deixe o poder assim que um novo governo for formado. Stuenkel afirma que Merkel “foi uma grande gestora de crises, foi o maior número de crises desde a Segunda Guerra Mundial, e ela será lembrada nesse sentido, mas não por ter articulado uma grande visão”.
A Alemanha e a União Europeia
Por ser a maior economia da União Europeia, é impossível avaliar o desempenho da gestão Merkel sem falar sobre as ações da chanceler no âmbito do bloco. Para Oliver Stuenkel, ela foi beneficiada pelo longo período em que ficou no poder.
“Sobretudo após 2008, ela se tornou a líder com maior senioridade na UE, e acho que ela se tornou bem habilidosa em antecipar onde poderia ter resistência, e liderar não de forma muito visível, trabalhar nos bastidores. Foi fundamental para que a UE mantivesse a capacidade de produzir consensos”, afirma Stuenkel.
Feldmann vai na mesma linha, e diz que Merkel “é a grande liderança da União Europeia, mesmo sem ocupar nenhum cargo nela. Foi ela quem mandou de fato, sendo a pessoa sempre mais ouvida”.
O principal exemplo da força de Merkel ocorreu durante a crise da zona do euro, quando países europeus, em especial a Grécia, se viram diante de dívidas insustentáveis e uma falta de recursos internacionais para empréstimos devido à crise de 2008, correndo risco de quebrar.
A União Europeia se mobilizou e forneceu empréstimos para essas nações, mas Merkel insistiu que eles fossem acompanhados de medidas de austeridade com cortes de gastos para garantir os pagamentos.
“Ela foi bem rigorosa, não permitiu flexibilização e exigiu que os gregos pagassem e honrassem suas dívidas, o que gerou uma discussão, mas ela conseguiu sua vontade. Todos pagaram o que deviam, então nenhum banco quebrou, em especial os alemães, que era o grande medo dela, o que teria sido muito ruim, um efeito dominó”, diz Feldmann.
Mas, quase 10 anos depois, Merkel teve uma mudança de postura que surpreendeu alguns analistas. Em julho de 2020, o bloco concordou em estabelecer um pacote de mais de 1 trilhão de euros destinados para a recuperação pós-pandemia e em investimentos ambientais, incluindo empréstimos e a concessão direta de verbas, sem necessidade de pagamento, para países mais afetados pela crise.
“É um pacto sensacional, de descarbonização da União Europeia, uma das coisas mais importantes do mandato dela. É um plano muito bem elaborado que transformará a Alemanha e a Europa na primeira região do mundo sem emissão de CO2, com coisas como proibição de circulação de carros a gasolina daqui a 14 anos”, afirma Feldmann.
Merkel foi uma das grandes negociadoras favoráveis ao pacote. Para Stuenkel, o movimento não indica uma mudança da chanceler, mas sim da opinião pública. “Os alemães estavam com uma postura menos austera, uma aceitação de que o mercado tem um papel essencial no contexto pandêmico, e claramente ela vem mudando aos poucos”.
Feldmann acredita que o plano “foi uma medida muito acertada do ponto de vista europeu, porque incentiva setores importantíssimos para o futuro próximo, como de energias renováveis. Boa parte do dinheiro vai pra isso”.
Além das críticas quanto à dureza com a Grécia, Merkel também foi criticada por não ter sido dura o suficiente para garantir o seguimento de princípios “democráticos e republicanos” no bloco, segundo Feldmann. Os principais “violadores” seriam a Hungria e a Polônia, mas o professor considera que a inação da chanceler também pode ter sido ligada ao fato dos dois países, assim como toda a região do leste europeu, ser um grande mercado consumidor da Alemanha.
Com sua ausência, o professor avalia que “fica mais difícil governar a Europa”. Stuenkel afirma que o presidente francês, Emmanuel Macron, não deve conseguir ocupar sozinho o espaço de Merkel em 2022, e que “torcerá para que o sucessor dela se consolide rápido para manter a parceria entre os dois países.”
Cenário externo
Alexandre Queiroz avalia que o governo de Merkel manteve o pragmatismo quanto à política e à economia internacional. Não à toa, o termo “merkeltilism” se refere ao fato de Merkel “privilegiar os interesses econômicos alemães, ao invés de, por exemplo, aumentar restrições e sanções contra países por questões de direitos humanos”.
O país registrou superávits em sua balança comercial em todos os anos de mandato da chanceler. Stuenkel afirma que a relação com os Estados Unidos, de proteção militar com a Otan, é importante porque isenta o país de investir no exército, podendo destinar o valor para outras áreas.
Entretanto, esse aspecto tem sido criticado pelos norte-americanos, em especial após a Alemanha permitir a construção do gasoduto Nord-Stream 2, barateando o gás natural da Rússia.
“A Alemanha encara um dilema há bastante tempo: por um lado precisa da proteção geopolítica americana mas tem interesses econômicos grandes com a China e com a Rússia”, diz Stuenkel.
O professor da FGV considera que Merkel fez um esforço de equilibrar a dependência com os EUA com a relação econômica com a China, hoje seu principal parceiro comercial, evitando investir em uma autonomia militar para o país ou para a Europa como um todo.
Ele considera que “houve uma tentativa de equilibrar EUA e China, mas a Alemanha sabe que no longo prazo é insustentável, então terá que tomar decisões mais pra frente sobre 5G, sanções contra empresas chinesas, e outras medidas que vão dificultar essa estratégia”.
E o Brasil?
Já a relação com o Brasil mudou pouco nos últimos anos. A Alemanha é o quarto maior parceiro comercial do país, e Feldmann afirma que ela “tem sido uma grande aliada”. “Há 10 anos, São Paulo era a segunda cidade do mundo em número de trabalhadores em empresas alemãs, temos todas as grandes aqui. Bayer, Volkswagen, Basf. Fora isso, o comércio é muito intenso”.
A principal mudança, aponta, veio com a dificuldade na aprovação de um acordo comercial de redução de tarifas entre o Mercosul, bloco do qual o Brasil faz parte, e a União Europeia, com as críticas à alta no desmatamento na Amazônia sendo o principal entrave.
“Ela sempre tentou fechar o acordo com o Mercosul para tentar salvar a Amazônia, tentou aliviar a situação, e dificilmente seu sucessor desempenharia o mesmo papel”, diz Stuenkel.
Para ele, a relação entre os dois países “tende a piorar, até porque teremos um ator menos experiente comandando a Alemanha. Os investidores da Alemanha no Brasil não se deixam assustar facilmente, mas a relação está no pior momento desde a redemocratização”.
*Sob supervisão de Ana Carolina Nunes