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    Com captação baixa e sem ajuda de liquidez, fintechs lutam para atravessar crise

    Startups do setor financeiro viviam 'boom' e agora passam por 1ª prova de fogo no país. Após COVID, setor pode encolher, com mais fortes engolindo mais fracas

    Fintechs: startups do setor financeiro querem ajuda do BC e se reinventam para sobreviver
    Fintechs: startups do setor financeiro querem ajuda do BC e se reinventam para sobreviver Foto: Edi Kurniawan/Unsplash

    Luísa Melo do CNN Brasil Business, em São Paulo

    Mirando um grande mercado potencial de desbancarizados, impulsionadas por um forte apetite de investidores e com apoio do Banco Central, as fintechs viveram um ‘boom’ no Brasil nos últimos anos. Agora, com o coronavírus, essas startups que levam tecnologia ao sistema financeiro passam por sua primeira prova de fogo. Com captação restrita, expostas ao aumento da inadimplência e sem acesso às políticas governamentais que garantem liquidez, muitas delas terão de se reinventar para sobreviver e, no fim, as mais fortes devem engolir as mais fracas.

    Por terem um modelo de negócio baseado em crescimento rápido e só começarem a lucrar depois de ganharem uma musculatura expressiva, startups dependem muito de recursos externos para operar. As fintechs levantam dinheiro em rodadas de investimento e também antecipam receitas “vendendo” suas contas a receber para fundos de recebíveis (os FIDCS). As maiores emitem ainda debêntures (títulos de dívida).

    Mas as incertezas trazidas pela pandemia reduziram e encareceram essas opções, ao mesmo tempo em que fizeram crescer a demanda por crédito e serviços financeiros, uma combinação perigosa que pode resultar em falta de liquidez e, em situações extremas, levar ao colapso.

    “Com a COVID, o que acontece é que o mercado de capitais brasileiro está totalmente parado. Quem for levantar capital agora, ou não vai conseguir ou vai pagar muito caro. E, no caso da fintechs, isso se traduz diretamente em preço para o consumidor”, reclama Rafael Pereira, presidente da Associação Brasileira de Crédito Digital (ABCD), que representa as fintechs de crédito.

    Os números comprovam essa percepção. O volume captado em emissões no país caiu 57,8% em março em relação a fevereiro, para R$ 19,7 bihões, mostram dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiros e de Capitais (Anbima).

    “A maioria das fintechs no Brasil cresce adquirindo novos consumidores com dinheiro de venture capital. E acreditamos que muitas delas só existem por causa da extraordinária quantidade de dinheiro barato que o mundo viu nos últimos cinco anos, e não pela a força de seus modelos de negócio”, disse o analista Jorge Kuri, do Morgan Stanley, em relatório divulgado nesta semana. “Sem recursos de venture capital, muito poucas vão conseguir crescer ou continuar”, acrescentou.

    Creditas, que tem o conglomerado japonês SoftBank Group como investidor
    Fintechs baseadas em crédito, como a Creditas, terão seus modelos testados pela pandemia
    Foto: Divulgação/Creditas

    O desafio não é exclusivo do Brasil. Em todo o mundo, a quantidade de recursos captados por fintechs no primeiro trimestre deste ano voltou aos níveis de 2017, segundo pesquisa da consultoria CB Insights. O volume somou US$ 6 bilhões, contra US$ 11 bilhões no trimestre anterior.

    “De fato, tem menos dinheiro no mercado para continuar expandindo”, emenda Ingrid Barth, diretora executiva ABFintechs, outra associação que representa o setor.

    A fintech de pagamentos Inovebanco é uma das que já sentem a mudança direto no caixa. Completados seis meses de operação, os R$ 4 milhões investidos inicialmente pelos fundadores se esgotaram e veio a necessidade de trazer dinheiro de fora para continuar crescendo. A empresa negociava aportes com três fundos, mas dois deles adiaram as decisões por conta do coronavírus.

    “Estávamos em conversas bem avançadas para fazer essa captação pré-pandemia e quando estourou o ‘lockdown’ as conversas pararam. A gente está sofrendo como todo mundo”, conta o presidente, Patrick Burnett.

    Não é que a disposição para investir tenha diminuído, segundo Arthur Mesnik, diretor financeiro do fundo de venture capital e.Bricks, que tem participação em fintechs como Guiabolso, Contabilizei e Vérios. A questão é que as exigências aumentaram, o que faz com que um número reduzido de companhias de fato sejam contempladas com recursos.

    “Não tenha dúvida de que a gente está mais seletivo, focando em empreendedor mais experiente e em modelos de negócio sustentáveis”, afirma. Parte dos esforços também está concentrada em garantir que as empresas que já estão no portfólio sejam capazes de atravessar a turbulência, segundo ele.

    Nos cálculos do Morgan Stanley, as companhias que não tiverem fundos suficientes para se manter por seis a 12 meses devem enfrentar dificuldades para sobreviver. O banco vê um cenário de três a seis meses de problemas “se amontoando” e uma trajetória de recuperação lenta que deve levar de 12 até 18 meses.

    Demanda alta, risco também

    Não há dados consolidados sobre a procura dos consumidores e empresas pelas fintechs após o início da crise. Mas agentes do setor afirmam ter notado aumento de demanda, especialmente no que diz respeito ao crédito. Com a captação reduzida, como ter liquidez para atendê-la?

    O cenário fica ainda mais nebuloso com o aumento do risco de que os clientes (atuais e futuros) não consigam honrar seus compromissos, diante da perda de receita e emprego causada pela pandemia.

    Muitas dessas startups, inclusive, são direcionadas para um público que não tem conta e não consegue empréstimo em banco  –  normalmente composto por profissionais autônomos e que não tem renda previsívivel e estável  –, justamente o mais prejudicado pelas medidas de isolamento.

    “O momento é muito desafiador para as fintechs, não resta dúvida. A inadimplência vai subir para patamares nunca vistos e o acesso à captação está mais restrito. Essa crise atinge diretamente o modelo de negócios de muitas delas”, diz o professor de finanças da Fundação Getulio Vargas (FGV), Alan de Genaro.

    O problema fica ainda mais evidente nas fintechs de crédito. “A liquidez preocupa. Boa parte do dinheiro que é emprestado vem do próprio pagamento dos clientes já existentes, é uma roda que vai girando. A partir do momento que algum adia uma parcela, já diminui a liquidez”, diz Francisco Ferreira, sócio-fundador da plataforma e financiamentos online BizCapital.

    O Morgan Stanley acredita que empresas grandes e já estabelecidas, como PagSeguro, Stone, XP, Easynvest e Original não devem ter grandes dificuldades para atravessar a crise por terem balanços e marcas fortes, fluxo de caixa positivo, financiamento garantido e alta rentabilidade. Ainda assim, dentre elas, as mais focadas em crédito, como Nubank, Creditas e Banco Inter terão seus modelos de negócios “testados”, segundo o banco.

    BC está de olho

    O Banco Central tem atuado próximo às fintechs e incentivado a competição no sistema financeiro ao criar mecanismos para regularizar a atuação dessas empresas. A autoridade monetária sabe do risco que elas correm neste momento e já tomou algumas medidas para ajudá-las a atravessar a pandemia.

    Passou a permitir, por exemplo, que essas startups emitam cartão de crédito e financiem suas operações com recursos repassados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES). Também autorizou que elas securitizem seus créditos  – ou seja, vendam seu recebíveis – para um leque mais amplo de fundos de investimento.

    O problema é que essas ações só valem para aquelas que já estão regularizadas como Sociedades de Crédito de Direto (SCD) e Sociedades de Empréstimo entre Pessoas (SEP). E como a regulação é nova (de 2018) e os processos burocrátios, a esmagadora maioria não é.

    Para se ter ideia, das cerca de 800 startups financeiras que a ABFintechs estima que existam no Brasil, apenas 20 são SCDs e cinco são SEPs, de acordo com dados do BC. Grande parte delas só está autorizada a atuar como instituição de pagamentos e faz parceirias com bancos para liquidar suas transações. Outras sequer têm licença específica.

    O setor está em conversas com o Banco Central para tentar ampliar as permissões para todo o universo. Quer também que elas possam partipar de uma eventual nova distribuição de benefícios sociais, caso o governo opte por essa via no processo de retomada da economia. “Por que não poderíamos estar repassando o coronavoucher?”, questiona Pereira, da ABCD.

    Nesse último caso, a vantagem para as empresas seria conquistar sem custos novos clientes que depois podem contratar outros produtos que elas oferecem – a ampliação da base de clientes é um processo importante para garantir o crescimento e que demanda altos investimentos pelas startups.

    O Nubank, que é uma financeira, por exemplo, já transferiu os R$ 600 do auxílio emergencial para 210 mil pessoas. A empresa diz que está preparada para enfrentar a crise porque gera caixa operacional desde 2017 e, portanto, não depende de novos aportes para pagar suas despesas mensais. Além disso, captou US$ 400 milhões no ano passado, que ainda não foram gastos.

    Procurado, o BC somente disse em nota que “está analisando todos os pleitos que tem recebido”.

    Outra possibilidade que ajudaria a dar liquidez às fitechs seria o Banco Central poder comprar títulos diretamente de instituições não bancárias, como os fundos que adquirem recebíveis dessas companhias, algo que hoje não é permitido. Isso está em discussão na “Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Orçamento de Guerra” e  evitaria o chamado “empoçamento”, que é quando os bancos ganham liquidez, mas não repassam os recursos ao mercado em forma de crédito.

    Enquanto a ajuda não chega…

    Enquanto esses pedidos não se tornam realidade, as fintechs terão que se reorganizar para sobreviver. As menos maduras terão até mesmo de rever todo o modelo de negócios para continuarem ativas.

    “O cenário é muito desafiador. Elas precisarão priorizar operações rentáveis e, se não houver, terão de minimizar a estratégia de crescimento. As campanhas de marketing, por exemplo, terão de ser revistas porque são caras e não necessariamente se traduzem em negócio neste momento”, avalia o professor Alan de Genaro, da FGV.

    Foi exatamente o que fez a Inovebanco. A empresa recolheu maquininhas de clientes que não eram interessantes para sua base e transferiu para outros quem podem gerar receita, e também cancelou planos de publicidade. Apesar do sufoco para crescer, a empresa diz que ainda consegue manter a operação atual com os recursos que tem e até encontrou um novo nicho de atuação.

    “Tivemos que montar uma engenharia financeira. Agora vamos entrar em um mercado de marketing novo, o das lives, capturando doações. Já temos a estrutura técnica para vender esse seviço”, diz Burnett.

    Ao fim da pandemia, as que conseguirem fazer melhor o dever de casa e tiverem mais caixa, assim como os bancos, podem acabar engolindo as menos preparadas. “Como o acesso a capital está difícil, negócios vão se tornar menos viáveis e talvez exista um grande movimento de consolidação e redesenho da indústria”, diz Pereira, da ABCD.