Catástrofe na Índia pode piorar ainda mais a escassez global
A aterrorizante onda de Covid-19 na Índia ameaça paralisar a recuperação econômica do país e deve refletir em vários setores da economia em todo o mundo
A terceira maior economia da Ásia vem lutando há semanas para controlar o aumento devastador da pandemia de Covid-19. Centenas de milhares de novos casos são relatados todos os dias, e os economistas estão repensando suas previsões de crescimento de dois dígitos este ano para o país.
É um sinal preocupante para uma nação indiana, que mergulhou na recessão no ano passado pela primeira vez em quase um quarto de século depois que o governo impôs um lockdownn nacional.
Até o momento, o primeiro-ministro Narendra Modi tem resistido aos apelos para impor outro lockdown total ao país, embora muitas regiões tenham anunciado suas próprias restrições pesadas. Mas vários setores da economia global que dependem da Índia estão ansiosos.
Se a crise se agravar, tudo – desde roupas e produtos farmacêuticos até serviços financeiros e transporte marítimo global – poderá sofrer.
Redes de fornecimento
Cerca de 80% do comércio mundial de bens por volume é transportado em navios, de acordo com a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, e a Índia fornece muitas das tripulações marítimas.
Mais de 200 mil de cerca de 1,7 milhão dos marinheiros em todo o mundo são da Índia, de acordo com Guy Platten, secretário-geral da Câmara Internacional de Navegação, acrescentando que vários têm patente de oficial e funções que exigem habilidades importantes.
“Esperamos de todo coração” que esta situação possa ser resolvida, Platten disse ao CNN Business. Do contrário, isso poderia levar a uma grande “escassez de profissionais do mar”, o que “perturbaria a cadeia de abastecimento global”.
Como muitos países proibiram voos vindos da Índia, ficou impossível mover trabalhadores indianos para portos em todo o mundo e trocar de tripulação.
René Piil Pedersen, chefe de Relações Marítimas da Maersk, a maior empresa de transporte de contêineres do mundo, espera que os países comecem a distinguir entre viajantes regulares e marinheiros. Caso contrário, o mundo poderia enfrentar uma séria ameaça aos fluxos globais de carga e uma “crise humanitária”, porque tripulações não poderão deixar seus navios e voltar para casa.
“Vai custar muito ao bem-estar mental deles”, afirmou Pedersen, cuja empresa emprega 30% de seus profissionais do mar da Índia.
A pandemia lançou o transporte marítimo global ao caos no ano passado, com quase 200 mil marinheiros presos por meses devido ao fechamento de portos e aviões parados. Alguns trabalhadores começaram a chamar suas embarcações de “prisões flutuantes”. Pedersen teme um retorno a esse cenário se a crise da Covid-19 na Índia continuar sem controle.
Também há atrasos significativos na movimentação das embarcações. Alguns lugares, como os Emirados Árabes Unidos, Singapura, Hong Kong e China continental, “já impuseram restrições de quarentena rígidas para navios que chegam de portos indianos”, relatou Sankar Narayanan, gerente de transporte da empresa de transporte e logística GAC Índia.
Especialistas dizem que vacinar marinheiros pode ser uma solução, mas algo difícil de se executar.
Vacinas e medicamentos
A campanha mundial de vacinação já está sofrendo por causa do surto na Índia, que normalmente produz mais de 60% de todas as vacinas vendidas globalmente. O país abriga o Serum Institute of India (SII), maior fabricante mundial de imunizantes.
Sua vasta capacidade de fabricação é o motivo pelo qual o país se inscreveu como um importante player na Covax Facility, o consórcio global que fornece doses gratuitas ou com desconto da vacina contra a Covid-19 para países de baixa renda.
O SII concordou no ano passado em fabricar até 200 milhões de doses de vacina para até 92 países. Mas, com apenas 2% da população da Índia totalmente vacinada, o governo e o SII mudaram o foco do fornecimento de vacinas para outros países, e agora estão priorizando cidadãos indianos.
As más notícias não param por aí. Além da escassez da vacina contra a Covid-19, outras consequências para a indústria farmacêutica mundial podem surgir se a disseminação da infecção na Índia não for controlada em breve.
A Índia é o maior fornecedor mundial de medicamentos genéricos, que são cópias de produtos farmacêuticos de marca que têm os mesmos efeitos, mas custam menos. Nos Estados Unidos, 90% de todas as prescrições são preenchidas com medicamentos genéricos e um em cada três comprimidos consumidos é produzido por um fabricante indiano de genéricos, de acordo com um estudo de abril de 2020 da Confederação da Indústria Indiana e da KPMG.
Mas as farmacêuticas indianas obtêm até 70% de suas matérias-primas da China, um elo da cadeia de suprimentos que parece vulnerável devido à expansão do coronavírus. No final de abril, a Sichuan Airlines, da China, suspendeu os voos de carga para a Índia por 15 dias.
A medida levou o principal grupo de exportação de produtos farmacêuticos da Índia a escrever ao embaixador da Índia em Pequim, instando-o a intervir na situação.
Na carta, Ravi Udaya Bhaskar, diretor geral do Conselho de Promoção de Exportações Farmacêuticas da Índia, classificou a suspensão como “preocupante” e disse que ela poderia ter um “efeito cascata” na cadeia de abastecimento.
“A maioria dos países depende da Índia para medicamentos genéricos, e a Índia depende da China para matéria-prima. Será um grande golpe para a cadeia de suprimentos farmacêutica global se o comércio entre os dois for interrompido”, disse Tinglong Dai, professor associado de Gerenciamento de Operações e Análise de Negócios da Escola de Negócios Johns Hopkins Carey.
Por enquanto, o impacto parece limitado. Bhaskar, autor do apelo ao embaixador, disse ao CNN Business na semana passada que atualmente não há escassez de medicamentos, já que as grandes empresas têm matéria-prima suficiente para abastecê-las nos próximos três a quatro meses. Ele também disse que a Sichuan Airlines deve retomar o serviço esta semana. A empresa, no entanto, não respondeu a um pedido de entrevista.
Roupas
A Índia é um dos maiores exportadores de têxteis do mundo e o setor está lutando contra uma grave escassez de mão de obra.
“É a primeira vez que nossa geração experimenta algo assim. Ninguém estava preparado para este cenário terrível”, afirmou Arpit Aryan Gupta, sócio e chefe de desenvolvimento de novos negócios da fabricante de roupas NG Apparels, que fica em Ludhiana, Punjab, um grande polo produtor de roupas.
A empresa, que fornece marcas como New Balance e Nordstrom, emprega cerca de 100 trabalhadores qualificados e semiqualificados, e quase metade deles deixou o trabalho desde o início do último surto de Covid-19. Gupta disse que está dando moradia para os trabalhadores remanescentes no local para manter a fábrica funcionando.
Em outros lugares, os empresários estão enfrentando cenários igualmente preocupantes.
Nos principais centros de produção de vestuário de Delhi e Bangalore (que também são estados com um alto número de infecções por Covid-19), o absenteísmo dos trabalhadores chega a 50%, segundo a consultoria Wazir Advisors. Para muitos fabricantes que ainda estão se recuperando da desaceleração do ano passado, a segurança dos trabalhadores se tornou uma grande preocupação.
O consumo da indústria doméstica de vestuário e as exportações no ano passado caíram 30% e 24%, respectivamente, de acordo com a Wazir Advisors. “Mas, para 2021, é difícil projetar agora, pois não temos certeza de quando essa pandemia terminará”, acrescentou a consultoria.
A Índia também é um grande exportador global de couro e artigos de couro. O país é o segundo maior exportador de roupas de couro e o quarto maior exportador de artigos desse material do mundo, de acordo com o Conselho Indiano para Exportações de Couro. É também um grande produtor de calçados, depois da China, produzindo cerca de três bilhões de pares de sapatos anualmente.
No ano passado, a pandemia trouxe um duro golpe para a indústria de couro da Índia, e as empresas apenas começaram a se recuperar antes da última onda levar a paralisações massivas e à escassez de pessoal qualificado.
Serviços financeiros
Grandes bancos e firmas de contabilidade estão lutando para manter suas operações online, dada a importância da Índia como um centro para seus escritórios.
Muitas empresas terceirizaram muitos empregos de tecnologia da informação e operações para a Índia nas últimas décadas, atraídos por uma força de trabalho qualificada e custos de mão de obra mais baratos. Quase 4,4 milhões de pessoas no país estão empregadas em TI e gerenciamento de processos de negócios, de acordo com a Associação Nacional de Empresas de Software e Serviços, uma entidade comercial.
Algumas empresas estão tomando medidas para enfrentar a crise, incluindo a transferência do trabalho para outros países, o incentivo ao home office e o aumento nos prazos dos projetos.
Os bancos Goldman Sachs (GS) e Wells Fargo (WFC), por exemplo, implementaram o trabalho remoto para todos os funcionários no país. Mas trabalhar em casa durante uma pandemia é complicado, especialmente se os funcionários precisam cuidar de parentes doentes. Também existem desafios em torno da segurança e proteção de dados, uma vez que os funcionários podem estar lidando com informações confidenciais da empresa ou de clientes.
Os bancos britânicos Barclays (BCLYF), NatWest e Standard Chartered (SCBFF) estão, em alguns casos, redirecionando o trabalho para outros países para aliviar a pressão sobre os funcionários na Índia, muitos dos quais adoeceram ou têm responsabilidades domésticas.
A gigante de serviços corporativos EY India, que tem mais de 56 mil trabalhadores, ativou um plano de continuidade de negócios no início da onda atual de coronavírus, que incluiu a transferência do trabalho para outras geografias. Quase todos os seus funcionários trabalham em casa, de acordo com Julie Teigland, sócia-gerente regional.
“Um número significativo de pessoas da EY e seus familiares foram afetados diretamente pela severa segunda onda de Covid-19 na Índia”, contou a executiva ao CNN Business.
A sucursal da CNN em Pequim e Hanna Ziady contribuíram para esta reportagem.
(Esse texto é uma tradução. Para ler o original, em inglês, clique aqui)