Análise: o que é “dominância fiscal”?
Se o Banco Central ceder entraremos na fase final da dominância fiscal, aquela onde a perda de credibilidade tanto na gestão monetária como a fiscal leva a uma generalizada fuga de capitais
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Estamos vivendo uma situação de excepcionalidade na questão monetária-fiscal. O modo de pensar “livro-texto” não se aplica, e quem tentar vai se dar mal. Muito disso tem se discutido sobre a rubrica da “dominância fiscal”, e é importante entender do que se trata porque já estamos de fato em um estágio inicial de dominância fiscal sobre a política monetária.
Em tempos de normalidade é ao contrário, há uma dependência da política fiscal em relação à política monetária: o Banco Central fixa uma trajetória da taxa Selic para atingir sua meta de inflação, e a política fiscal ajusta para compensar qualquer efeito da oscilação da Selic sobre o endividamento público – se a Selic subir, há um aumento da posição primária em algum momento para compensar o gasto maior com juros da dívida do Tesouro.
Mas hoje, onde o governo não sinaliza disposição de gerar uma sequência de superavit primários necessários para a estabilidade da relação dívida/PIB, essa relação inverte: a política monetária tem que pagar um prêmio pelo risco alto que a queda da relação dívida/PIB ocorra via inflação, isto é, via o “engordamento” do denominador, o PIB nominal.
Esse prêmio, expresso por uma alta nas taxas de juros futuras, tem que ser validada pela trajetória da Selic ao longo do tempo. Se não, a parcela mais avessa ao risco dos investidores hoje rolando a dívida do Tesouro vai sair comprando dólares. Essa compra de dólares aumenta a inflação, engordando o denominador – o PIB nominal, derrubando a relação dívida/PIB pela imperfeita indexação da dívida à inflação.
Assim se reverte a dependência: a política monetária tem que pagar o prêmio pedido dado a trajetória fiscal insustentável e o risco de uma tentativa de “solução via inflação”. Isso seria um estágio inicial de dominância fiscal.
Percebam que a eventual “solução via inflação” depende da cooperação/inação do Banco Central. A gestão da Selic deve permitir uma dose de desvalorização cambial para acelerar a inflação de tal forma a derrubar o valor real do endividamento em relação ao PIB, isto é, impor perdas aos detentores da dívida pública. Isso aconteceu em 2012-2022: neste episódio, 100% dos bancos centrais ao redor do mundo se disseram surpreendidos com a inflação que acabou não sendo “transitória”, mas o resultado “inesperado” foi uma forte queda no valor dos ativos de renda fixa, o que acabou derrubando a relação dívida/PIB em vários países, inclusive o Brasil.
Essa é a ótica correta para interpretar a surpreendente decisão do nosso Banco Central na sua última reunião. O Copom, e mais especificamente o novo presidente da instituição, disse para os gestores da política fiscal: “não vamos jogar esse jogo, não conte conosco para usar a inflação para resolver sua falta de compromisso com a estabilidade fiscal”.
Então agora temos uma quebra de braços: o Banco Central sinaliza a disposição de, no limite, jogar a economia em uma recessão antes da possibilidade de perder sua credibilidade– e não se enganem, no limite é assim que essa história acaba se não houver um ajuste fiscal crível, com uma recessão.
Essa “ameaça” do Banco Central é crível? Institucionalmente, dada a autonomia da autarquia, sim. Politicamente, só o tempo dirá se o novo presidente vai aguentar a pressão.
Se em algum momento o Banco Central ceder, aí sim entraremos na fase final da dominância fiscal, aquela onde a perda de credibilidade tanto na gestão monetária como a fiscal leva a uma generalizada fuga de capitais, o que acaba gerando ou um violento processo de repressão financeira – fechamento do mercado de câmbio, restrições sobre saque bancários etc. ou uma mudança radical de regime monetário-fiscal.
Obviamente dado as defasagens entre a política monetária restritiva e a economia real, vamos viver por muitos meses com uma disfunção cognitiva entre uma economia com bom crescimento e baixo desemprego versus um mercado financeiro precificando uma crise. Isso pode, inicialmente, levar o governo a pensar que tudo isso não passa de uma “guerra de narrativas”, e que culpar a tal “Faria Lima” basta. Isso pode durar até haver uma queda “inesperada” do PIB, dado a quebra de braços entre a gestão fiscal e a política monetária. Mas quando isso acontecer, será tarde demais.
Aí teremos dois cenários: ou o governo entendeu finalmente a necessidade de um ajuste fiscal estrutural (se gradual) ou, reeditando 2011-2013, partimos para um tudo ou nada com mais gastos fiscais e parafiscais em uma tentativa desesperada de manter a economia rodando até as eleições de 2026. Este cenário muito provavelmente desencadearia o estágio final da dominância fiscal.