O que a temperatura tem a ver com computação quântica?
Toda a parafernália necessária para que um computador quântico funcione é muito maior que o processador comum, e boa parte dela é o sistema de resfriamento. Entenda por que isso é importante
Muitos de vocês já devem ter ouvido falar de computação quântica. A importância dela é tão grande na resolução de problemas complexos que muitos especialistas consideram que ela irá desbloquear novos horizontes para a humanidade.
E, diante de tantas catástrofes que já estamos enfrentando, é bom que ela dê conta mesmo.
Independentemente da área, a QC (Quantum Computing) é capaz de impulsionar novas descobertas de forma rápida e eficiente, porque além de precisar de menos energia do que os supercomputadores usados hoje em dia, tem processadores compactos (o processador IBM Quantum é um “wafer”, como eles chamam, são do mesmo tamanho dos que temos nos nossos notebooks).
Claro que toda a parafernália necessária para que um computador quântico funcione é muito maior que o processador. No vídeo do IBM Quantum System Two dá pra ver isso. Todo o sistema parece um armário modular e boa parte dessa infraestrutura é o sistema de resfriamento, necessário para manter o processador em temperaturas operacionais extremamente baixas. Esse é o principal ponto deste artigo, mas para que vocês entendam de forma simplificada essa questão da temperatura, não tem como não explicar um pouquinho como esses computadores funcionam.
Como eu disse pra vocês, eles são muito mais rápidos. Mas por que e como isso acontece?
Pra começar, quando falamos em computador, estamos falando em máquinas que computam, que fazem cálculos, ou seja, que são capazes de processar grandes quantidades de dados e de obedecer a instruções e regras para um determinado fim.
Basicamente, são calculadoras em grande escala e que podem rodar programas ou software cada vez mais complexos, ou seja, com grande quantidade de cálculos. Pra dar um exemplo, pensemos nas redes neurais, fundamentais para o desenvolvimento da inteligência artificial. A quantidade de parâmetros e neurônios necessários pra chegar em modelos que temos hoje, como os LLMs (grandes modelos de linguagem), somados à enorme quantidade de dados, faz com que o processamento, o cálculo de tudo isso, se torne absurdo. Por isso se fala tanto das GPUs e NPUs.
Mas boa parte dos cálculos que precisamos no dia-a-dia, ou para problemas que podem ser simplificados, os computadores e supercomputadores que temos hoje dão conta. Basta lembrar que o homem chegou à Lua com o Mainframe System/360 da IBM, e ele tinha a capacidade computacional de uma calculadora de bolso atual, menos que o smartphone que você carrega todos os dias com você.
Vou dar outro exemplo. Todo mundo ainda aprende em Química a fazer alguns cálculos básicos com relação aos gases. Quem não se lembra da fórmula que relaciona a pressão e o volume do gás com sua temperatura (PV = nRT)?
Pois bem, esse cálculo é simples e faz com que a gente possa entender a relação de algumas propriedades de um gás confinado e que não sofre variação de temperatura com o tempo e que seja estável, sem interação entre suas moléculas. E esse cálculo basta pra muita coisa.
Agora, vamos dizer que esse sistema é complexo, e estamos falando de uma indústria petroquímica, é um processo complexo com gás natural que tem que ser otimizado. Talvez saber melhor sobre a interação das moléculas do gás faça sentido. Porém, a simulação computacional desse sistema, acompanhando as posições e velocidades de todas as moléculas (algo em torno de 1024 números) variando ao longo do tempo já é algo que não dá pra ser feito nos computadores tradicionais. É muita coisa! É pra esse tipo de complexidade que entram em cena os computadores quânticos, que trabalham com unidades de informação que são uma doidera de compreender, até porque estão além da nossa capacidade imaginativa. Essa unidade básica de informação na computação quântica é chamada de qubit, também conhecido como bit quântico.
Mas o que são os qubits?
Diferentemente de um bit binário clássico que pode representar apenas um único valor binário, ou seja, 0 ou 1, o qubit (quantum bits) pode representar 0, 1 ou qualquer proporção de 0 e 1, ao mesmo tempo.
No bit clássico, a unidade de informação só pode estar em um dos dois estados possíveis, afinal estamos falando de semicondutores à base de silício, que deixam ou não passar energia. No caso do qubit, que podem ser formados por íons aprisionados, fótons, átomos artificiais ou reais ou quasipartículas, eles podem existir em múltiplos estados simultaneamente, graças à sobreposição quântica, que vou explicar mais adiante.
Isso faz com que o qubit tenha superposição de ambos os estados, com uma determinada probabilidade de ser 0 e uma determinada probabilidade de ser 1. E é justamente essa propriedade de superposição que permite que os algoritmos quânticos processem informações de uma forma muito mais rápida e eficiente, já que a quantidade de informações representadas aumenta exponencialmente se comparada ao bit clássico.
Fisicamente falando, é como se uma corrente elétrica estivesse, ao mesmo tempo, presente e ausente em um transistor. Mas aqui as leis da física tradicional, que aprendemos na escola, não se aplicam.
Estamos falando da mecânica quântica, que tem leis próprias e bem diferente das que operam no nosso mundo. Tudo bem que o nosso mundo é composto dos mundinhos quânticos de todos os átomos do universo, mas é uma piração total, incompreensível por natureza.
E quando eu falo de mundo quântico, estou falando de sistemas físicos cujas dimensões são próximas ou abaixo da escala atômica. Essas “partículas” que formam os átomos, que vão muito além de prótons, nêutrons e elétrons, são capazes de “atravessar paredes, se comunicam por telepatia e existem em vários lugares ao mesmo tempo“, justamente porque parte dessas partículas são regidas por uma função de onda e por isso tem comportamentos estranhos.
E a computação quântica?
Um computador quântico funciona usando princípios quânticos. O primeiro deles, que já citei, é a superposição, que faz com que a representação de cada estado quântico seja a soma de dois ou mais estados distintos, ou seja, a combinação de todas as configurações possíveis de um qubit. Isso possibilita a criação de espaços computacionais complexos e multidimensionais, permitindo que processem milhões de operações simultaneamente. Basicamente podemos representar problemas complexos de novas maneiras nesses espaços.
O segundo deles é o entrelaçamento quântico. Lembra que eu falei que as partículas podem se comunicar por “telepatia”? Pois bem, é esse princípio que faz com que dois sistemas fiquem ligados de forma tão intimamente que, não importa a distância entre eles, o conhecimento sobre um fornece o conhecimento imediato sobre o outro. Pensando em processamento é como se pudéssemos obter conclusões sobre uma partícula medindo outra, assim como as mudanças em um qubit afetam o outro diretamente. Os algoritmos quânticos utilizam esses relacionamentos para localizar soluções para problemas complexos.
Por fim temos a decoerência, que é a perda do estado quântico ou perda de coerência em um bit quântico. Esse fator faz com que a computação quântica seja um grande desafio, afinal qualquer interferência de fora do sistema pode fazer com que um qubit perda seu estado quântico, que acarreta em perda de informações e consequentemente erros.
Interferências ambientais como a radiação, exposição à luz difusa, vibração ou mudanças em campo eletromagnético e temperatura podem causar o colapso do estado quântico dos qubits. Por isso, um dos grandes desafios na construção de um computador quântico é projetar vários recursos que tentam retardar a decoerência do estado, protegendo os bits quânticos de campos externos. Lembra do sistema de resfriamento? Esse é um dos principais.
O importante aqui é que esses princípios permitem, por si só, o processamento paralelo de várias hipóteses ao mesmo tempo, pela superposição, acelerando tarefas e cálculos de alta complexidade. A manipulação dos qubits se vale de portas quânticas, que aplicam transformações complexas, por meio do entrelaçamento quântico. Isso faz com que a correlação entre qubits passe a ser instantânea, acelerando a transmissão de informações. Por isso costuma-se dizer que computação quântica representa um salto exponencial em relação à computação tradicional, já que a progressão do aumento computacional aumenta exponencialmente. Acompanhem comigo: cada qubit equivale a 2 bits em termos de capacidade de processamento; 2 qubits a 4 bits; 10 qubits a 1024 bits ou 1 Kilo bit; 20 qubits a 1.048.576 bits ou 1 Giga bit e por aí vai. Mas nem tudo é perfeito, tem a decoerência…
Controle de temperatura
Finalmente chegamos ao principal fator que dificulta a computação quântica. Por ser um sistema extremamente frágil, permitir a sua operação requer um controle total do ambiente, pois ele acarreta muitos erros, como falei, o que inviabiliza a operação.
E todo esse sistema de controle é de difícil construção e manutenção, afinal não é só manter a temperatura constante. Essa temperatura é extremamente baixa! Para sistema quântico operar ele precisa estar próximo do zero absoluto, ou seja, temperatura mínima limite que faz com que que a vibração das moléculas que compõem o corpo seja paralisada. Estamos falando de -273,15 °C.
E esse é o grande desafio, pois interfere na precisão e na escalabilidade do sistema. Mesmo controlando a temperatura, o que mantém o sistema estável, a interferência potencial de outros qubits também geram erros. Manter a estabilidade ou a vida útil de um qubit em estado de superposição é um desafio e, por enquanto, está limitado a alguns milissegundos ou microssegundos. Por isso, cientistas e engenheiros se dedicam na contenção dos qubits, mas também em técnicas de supressão, correção e mitigação de erros.
E grandes avanços têm sido feitos nos últimos anos. No início deste ano foi publicado um artigo na Science Advance no qual físicos japoneses anunciaram ter alcançado a coerência quântica à temperatura ambiente. Pelo nome já conseguimos compreender que é o oposto da decoerência, e, portanto, é a capacidade de um sistema quântico manter um estado bem definido ao longo do tempo sem ser afetado por perturbações do seu entorno. Ou seja, os dados não são perdidos e temos uma diminuição dos erros.
Isso foi possível pela incorporação de um cromóforo, uma molécula de corante que absorve luz e emite cor, em uma estrutura metal-orgânica, ou MOF, um material cristalino nanoestruturado com uma porosidade extrema, composto de íons metálicos e ligantes orgânicos.
O cromóforo foi capaz de suprimir o movimento molecular, coisa que só era capaz no zero absoluto. Isso foi feito em domínios ordenados dentro da estrutura metal-orgânica, que levou à flutuação suficiente para que houvesse interação de troca entre as partículas, sem causar decoerência.
Essa estabilidade acontece em sistemas específicos, que no caso do estudo foi a utilização do spin intrínseco de um elétron, propriedade quântica relacionada ao momento magnético das partículas. No experimento foram utilizados os spins dos elétrons, que têm dois estados: para cima e para baixo. Os qubits baseados em spin podem existir em uma combinação desses estados e podem ser entrelaçados, permitindo que o estado de um qubit seja inferido por outro, viabilizando a realização de cálculos.
Os pesquisadores verificaram que os cromóforos poderiam induzir os elétrons a assumir spins específicos em temperatura ambiente, através de um processo chamado fissão de singleto, um estado quântico com momento angular total zero que se desintegra em duas partículas com momentos angulares opostos. Se no estado singleto os elétrons estão emparelhados, na fissão temos a desintegração.
O MOF utilizado, além de conseguir acumular muitos cromóforos, tem poros pequenos o suficiente para que essas moléculas tenham seu movimento fortemente restringindo, girando apenas num determinado ângulo, assumindo, assim, um spin específico.
Com esse controle os pesquisadores puderam observar a coerência do estado quântico de quintetos emaranhados se manter por mais de 100 nanossegundos à temperatura ambiente, o que já é um grande feito, afinal isso é aproximadamente 10 vezes mais o tempo que uma memória RAM eletrônica consegue manter seu bit. Isso pode abrir caminho para o desenvolvimento de materiais que possam ter essa propriedade em temperatura ambiente.
Em 2013 um grupo de pesquisadores conseguiu manter a memória de bits quânticos durante 39 minutos à temperatura ambiente, mas quando se tenta escalonar o processo tudo se complica. O preço para manter a coerência quântica em poucos qubits é altíssimo.
Por isso, esses sistemas estão restritos às grandes corporações e órgãos de governo. E com essa capacidade revolucionária de processamento, acabam tendo controle criterioso, pois podem ser usados de formas antiéticas. Se com a inteligência artificial generativa já estamos enfrentando grandes problemas relacionados à segurança e criptografia, com a computação quântica isso passa a ser um grande desafio.
Por isso, da mesma forma que a IA já deveria ter sido regulamentada e regulada no mundo todo, há anos, a QC também deve ter suas restrições e ser usada para o bem comum, como descrição da dobra de milhares de proteínas e desenvolvimento de novos medicamento, como a simulação mais precisa de modelos climáticos complexos.
Isso é importante nesse momento e permite uma compreensão mais profunda da crise climática que estamos enfrentando, suas implicações e antecipação segura de padrões climáticos futuros para que evitemos catástrofes como a que está acontecendo no Rio Grande do Sul nesse momento. Não que saber antecipadamente seja suficiente sem ação concreta, mas a tendência, se tudo continuar como está, é só piorar. Quem sabe daqui pra frente isso nos traga mais planejamento quanto às ameaças.
Outro ponto de atenção é a chamada criptografia quântica, que poderia ser usada para desenvolver sistemas de criptografia mais seguros, assim como as redes quânticas poderiam garantir privacidade nas comunicações em rede. O futuro é promissor, mas temos um longo passo até isso ser possível, tanto cientificamente como eticamente.