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    Rita Wu
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    Rita Wu

    Arquiteta e designer apaixonada por tecnologias. Interdisciplinar por natureza e indisciplinar por opção, é palestrante, maker e mãe do doguinho Ovo

    O que o fim do Artifact nos mostra sobre o futuro

    App de notícias será descontinuado pouco menos de um ano após seu lançamento

    No dia 12 de janeiro, todos os usuários do Artifact, um aplicativo de notícia com IA, ficaram chocados com o post do CEO Kevin Systrom no Medium, falando que o app seria descontinuado, pouco menos de um ano após seu lançamento, ou seja, agora no fim de fevereiro. Eu particularmente levei um tempinho para digerir a notícia, afinal era o aplicativo que eu mais usava, desde o seu lançamento em fevereiro do ano passado.

    Apesar de funcionar apenas em inglês, desde que os fundadores o apresentaram como um “TikTok de textos”, eu já comecei a usar. Aos poucos uma série de funcionalidades foram surgindo e deixando o app, para além de um “streaming de notícias”, uma rede social baseada em boa informação e conhecimento. E a IA funcionava bem, sempre me entregava exatamente o tipo de informação que eu iria atrás, só que com muito mais trabalho. E olha que eu já tinha testado vários outros apps assim, mas ainda se baseiam em uma previsão óbvia do que desejamos, sem surpresas.

    A partir do uso de aprendizado de máquina, o Artifact fornecia postagens e histórias semelhantes aos assuntos já lidos pelo usuário. Sendo assim, o algoritmo se ajustava da mesma forma que o feed do TikTok quando o usuário assiste a vídeos na página ‘Para Você’. Só que além disso, assuntos outros e de veículos que eu não costumava a ler começavam a aparecer, e isso era muito bom. Essas recomendações criavam um feed de notícias personalizado, mas também ousado.

    Pra quem produz conteúdo, principalmente jornalístico, a plataforma também começava a criar um espaço importante, principalmente depois de todas as tretas que acompanhamos do X, ex-Twitter. Era um oásis em meio ao laissez-faire que virou as redes sociais em relação à notícia, o que permitiu a proliferação de “fake news” e toda a disputa de narrativas que temos hoje.

    Claro que, por ter IA em sua base desde o início, o app acabava se diferenciado, pois conseguia resumir notícias e até reescrever alguns artigos considerados “caça-cliques” pelos usuários da plataforma, que ainda tinham a opção de comentar nas matérias. Mas nada disso foi capaz de atrair pessoas suficientes para que a equipe do Artifact continuasse. E analisar, mesmo que superficialmente, o que levou uma plataforma com IA, que é o que todos querem ser, ao fim, é interessante para entendermos os movimentos que estão acontecendo entre as empresas de tecnologia nativa.

    Estamos acompanhando, ainda, uma série de demissões em massa de empresas de tecnologia, assim como a interrupção de uma série de serviços que tinham no centro a tecnologia para entregar soluções. Até pra gente não sair da mesma temática, aqui no Brasil vimos, no ano passado, a Headline (que também era uma plataforma de notícias) chegar ao seu fim.

    Mas por que plataformas bem resolvidas, com bom design e que utilizam a IA de forma inteligente acabam assim, tão rápido? Fica ainda mais difícil de entender se olharmos a quantidade de investimentos em diversos produtos e serviços que utilizam IA, fora toda a captura de atenção que gera tudo que tem IA de alguma forma (ou de qualquer forma).

    O que deu errado?

    Acho que a resposta é bem simples. O uso de IA não garante sucesso. E, de fato, tenho visto muitos projetos baseado em IA, que já existiam antes do boom do ChatGPT em outubro de 2022, acabarem.

    E esse é o primeiro ponto. Hoje estamos acompanhando a “corrida pela inteligência artificial”. Ninguém quer ficar para trás e todas as empresas estão colocando essas palavras no seu discurso. É quase como se fosse o mantra da atualidade, que todos repetem mas que no fundo pouca gente sabe tirar proveito do potencial que hoje é possível com o uso dessas redes neurais.

    Diversos setores forçam a barra para utilizar “IA”. E olha que muitas empresas já usavam, mas simplesmente nem davam esse nome para seus algoritmos e programas. E em um mundo onde todo e qualquer serviço vai utilizar alguma infraestrutura tecnológica, vai ser cada vez mais normal usarmos IA, e não precisamos ficar falando disso, assim como já acontecia antes.

    Como o próprio CEO Kevin Systrom colocou na postagem:

    Vivemos numa época emocionante em que a inteligência artificial está a mudar praticamente tudo o que tocamos e as oportunidades para novas ideias parecem ilimitadas.”

    Ela vai estar aí, e será cada vez mais invisível, o que também vai diluir cada vez mais a atenção dos investidores para isso. A IA é um meio e não um fim, pelo menos quando se trata de produtos e serviços. O sucesso do ChatGPT recentemente também se deu, em parte, porque hoje em dia as pessoas leem e escrevem pouco. Quando o fazem, é bem menos surpreendente que qualquer texto feito pelo ChatGPT. Pra quem escreve mesmo, sabe que não vai ser substituído por ele, e quando o usar, o fará de forma inteligente e otimizada.

    O segundo ponto é um aglomerado de motivos específicos da plataforma, mas que nos trazem questões sobre o que são hoje as redes sociais (que se tornaram, na verdade, parassociais).

    É claro que fatores como usar inglês (problema facilmente resolvível com o uso de IA em traduções automáticas), a falta de usuários internacionais (os EUA foram responsáveis por 44% de todos os downloads do aplicativo) e a concorrência (durante o tempo em que o Artifact esteve no mercado, o SmartNews teve 2 milhões de downloads, e o Artifact tinha menos de um quarto desse valor) ajudaram nesse processo.

    Mas outra questão importante é que a concorrência não era apenas com outros apps de leitura de notícias, mas principalmente com outras plataformas que começaram como rede social e foram mudando seu foco de distribuir conteúdo. Isso fazia com que o Artifact concorresse diretamente com a Meta, uma vez que o Facebook, o Instagram e o WhatsApp servem como portais onde bilhões de usuários se informam diariamente. Todas essas e mais outras questões que envolviam o negócio em si levou o time à decisão de encerrar o aplicativo. O app até conseguiu formar um público fiel, mas não atraiu gente o suficiente para justificar a continuidade dos investimentos. Na postagem temos:

    Construímos algo que um grupo central de usuários adora, mas concluímos que a oportunidade de mercado não é grande o suficiente para justificar o investimento contínuo dessa maneira. É fácil para as startups ignorarem essa realidade, mas muitas vezes tomar a decisão difícil mais cedo é melhor para todos os envolvidos.

    De fato, tomar essa decisão no início pode ser o melhor a ser feito. Mas o que me chamou atenção ao longo da minha breve jornada utilizando o app é que eu usava apenas a função básica e primeira: a de me perder no feed quase perfeito. Com o passar do tempo uma série de recursos foram adicionados e começaram a diluir o foco, que era justamente fornecer uma boa experiência de leitura de notícias.

    Muitas atualizações surgiram e rapidamente o aplicativo passou a permitir que os usuários postassem seus links (como no Pinterest), depois era possível postar nossos conteúdos em texto, como no X, compartilhar em outras redes, dava pra curtir e comentar, ou seja, era quase como se o app estivesse forçando a gente ter o mesmo comportamento que tínhamos em outras redes, como querer mais seguidores, receber pontuação, gerar discussão e engajamento. Era como se o Artifact quisesse se tornar mais uma rede social. Bem frustrante enquanto objetivo. Esperava algo mais “pós rede social” de dois fundadores que criaram o Instagram.

    Apesar desse desejo oculto (ou não), essa “rede” ainda se salvava, justamente porque era uma rede nichada e tinha muita gente boa usando. As discussões eram boas, os conteúdos confiáveis e isso fazia a comunidade se sentir viva.

    Mas, para mim, sempre vem a questão: por que tudo tem que virar uma rede social ou uma comunidade?

    Bem, finalmente chegamos no terceiro ponto, que pra mim é crucial e tem tudo a ver com como a notícia existe hoje e como ela chega a nós.

    A forma como encontramos e recebemos notícias está mudando rapidamente com a IA. Hoje, pra além de “dar um Google”, temos plataformas específica, como era o Artifact, temos as redes sociais, plataformas de vídeo e de transmissão online e claro, chatbots que nos fornecem, a partir dos nossos desejos (prompts), informações e respostas sem a necessidade de clicar em links ou ler longas notícias. E isso é algo que está impactando o tráfego dos editores e grandes veículos de notícia na internet. Isso tem levado, por exemplo, o jornal The New York Times a processar a OpenAI por treinar o ChatGPT usando seu conteúdo sem permissão. Mas há quem queira jogar junto, como é o caso da Axel Springer, uma das maiores editoras digitais da Europa, que está licenciando seu conteúdo para a OpenAI mediante o pagamento de uma taxa, na esperança de ficar à frente dos movimentos do mercado. Tudo isso muda o nosso comportamento e passamos a usar cada vez menos plataformas como Apple News ou Google News.

    Além desse movimento dos consumidores de conteúdo, temos também a mudança de como todos os conteúdos são achados, anunciados e ranqueados na internet. Se antes se tornar relevante exigia um grande trabalho de SEO (Search Engine Optimization), agora para aparecer nas respostas dos chats, temos que começar a usar o “PEO” (Prompt Engine Optimization).

    De qualquer forma, a fala de Systrom resume tudo:

    Notícias e informações continuam sendo áreas críticas para investimentos em startups. Estamos num momento existencial em que muitas publicações estão encerrando ou enfrentando dificuldades, as notícias locais praticamente desapareceram e as grandes editoras têm relações tensas com as principais empresas tecnológicas. A minha esperança é que a tecnologia possa encontrar formas de preservar, apoiar e fazer crescer estas instituições e que estas instituições encontrem formas de aproveitar a escala que coisas como a IA podem proporcionar.

    Certamente Kevin Systrom e o brasileiro Mike Krieger, mais conhecidos como os fundadores do Instagram, logo mais estarão em outro projeto audacioso, mas o jornalismo, principalmente o independente, vai continuar a penar e lutando para não desaparecer. Essa é mais uma daquelas histórias que acompanhamos no micro, principalmente quem gosta de tecnologia, mas que no macro dá indicativos para onde estamos indo. Se esse lugar é bom ou não, deixo para vocês concluírem.