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    Rita Wu
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    Rita Wu

    Arquiteta e designer apaixonada por tecnologias. Interdisciplinar por natureza e indisciplinar por opção, é palestrante, maker e mãe do doguinho Ovo

    O mundo sem telas é possível?

    Muitas pessoas que pensam tecnologia acreditam nessa possibilidade, mas outros acham mais plausível que as telas sobrevivam, mas percam o seu protagonismo

    Não há dúvidas que a tecnologia tem um enorme impacto nas nossas vidas, mudando nossos hábitos, a forma de nos relacionarmos e afetando a nossa saúde. Ao mesmo tempo que essa influência aumenta em todas as áreas, aumenta a nossa dependência.

    O meu último texto, sobre o possível fim dos aplicativos, me direcionou para mais uma reflexão. Se os aplicativos que usamos hoje dependem da interface visual, ou seja, basicamente telas, será que em um futuro próximo, poderíamos viver praticamente sem telas, ou pelo menos a dos smartphones?

    Há pelo menos 10 anos muitas pessoas que pensam e desenvolvem tecnologia acreditam nessa possibilidade. Outros – e nesse grupo eu me incluo – acham mais plausível que as telas não serão absolutamente substituídas, mas certamente perderão seu protagonismo quando interagirmos com tecnologias digitais.

    Apesar de acreditar nisso, vem à minha cabeça uma série de imagens distópicas, afinal se não mudarmos a nossa forma de estar no mundo, as mudanças climáticas serão tão devastadoras que será difícil viver na realidade.

     

    Talvez, nesse sentido, imagino que poderemos usar as telas para simular uma realidade mais “vivível”, como acontece no livro de ficção científica “Jogador nº1”, de Ernest Cline, que foi adaptado para o cinema por Steven Spielberg. Em resumo, as pessoas passam a ignorar um mundo destruído pela miséria para viverem na realidade virtual (RV). Seria uma fuga, e não uma interação.

    O mesmo acontece no filme de animação “Mars Express”, lançado no ano passado, por Jérémie Périn. Sem dar muito spoiler, é uma ficção científica incrível que explora muitos dos dilemas que estamos enfrentando com as inteligências artificiais (IAs) e o medo de que elas superem os humanos. Para não olharmos para o céu devastado, telas de led passam a simular um céu limpo, azul.

    Assim como essas ficções, existem inúmeras outras que mostram como simular uma realidade melhor pode ser a única alternativa para conseguirmos viver. Mas nesse caso acredito que não seriam exatamente telas, e por isso elas poderiam perder muito do seu protagonismo. No fim, o que importa aqui não é a tela em si, mas sim o que elas transmitem.

    Imagem do céu de led do filme "Mars Express"
    Imagem do céu de led do filme “Mars Express” / Reprodução

    O mundo pós-telas

    Se analisarmos, desde os primeiros computadores, até os dias de hoje, nós não mudamos muito nossa interface de usuário (UI). Continuamos a ter uma tela e um mouse ou um dedo. Mas será que poderemos imaginar um futuro onde teremos interfaces integradas ao nosso corpo e com novas funcionalidades?

    Em 2011, vimos surgir a Siri, e com ela a popularização dos assistentes virtuais inteligentes, como a Alexa, Cortana, entre outras. De lá pra cá, elas não mudaram muito, tendo avançado recentemente com a inteligência artificial generativa (GenAI), tornando nossa interação melhor e nossos comandos mais elaborados. Nesse mesmo período, em 2010, vimos também pipocar as televisões 3D, mas foi uma tela que não pegou.

    Foi nessa época que muitos designers começaram a imaginar o que viria a ser chamado “screenless”, ou seja, dispositivos que apostavam em uma interação mais natural, assim como dois humanos conversando.

    Comandos por voz passaram a ser introduzidos em diversos produtos. No SXSW de 2013 (South by Southwest, um dos eventos mais importantes de tecnologia e cultura), o UX Designer, Golden Krishna, deu uma palestra, e fez tanto sucesso que, em 2015, ele lançou o livro “The Best Interface Is No Interface: The Simple Path to Brilliant Technology”, que trata da decadência dos aplicativos e suas interfaces gráficas, além do nosso cansaço de telas.

    No mesmo evento, em 2018, Christopher Ferrel falou do futuro sem telas da internet, com o uso de voz e dispositivos vestíveis, que marcaria a transição dos smartphones para os smart wearables (dispositivos vestíveis inteligentes) e as interfaces invisíveis. Ainda não rolou, mas estamos, agora, nos aproximando dessa transição.

    Rita Wu exibe um exemplar do livro "The Best Interface Is No Interface: The Simple Path to Brilliant Technology"
    Meu exemplar do livro “The Best Interface Is No Interface: The Simple Path to Brilliant Technology” / Arquivo pessoal

    No ano passado, vimos algumas tentativas de tornar a computação perfeitamente integrada às nossas vidas. Na palestra “The Disappearing Computer — and a World Where You Can Take AI Everywhere”, Imran Chaudhri, co-fundador da Humane, empresa do AI Pin, é bem enfático ao dizer que no futuro, os dispositivos não estarão no nosso rosto a poucos milímetros dos nossos olhos, como os óculos de realidade virtual e aumentada (RV e RA), pois isso continuaria a ser uma barreira entre nós e o mundo.

    Para ela, a tecnologia será mais ambiental e contextual, e o AI Pin seria uma tentativa disso, apesar de ainda distante funcionalmente. Nesse sentido, não entendo as telas cada vez maiores nos carros. Além de nos distrair, adicionam camadas de complexidade, ao invés de tornar os processos mais simples e as interfaces mais intuitivas e invisíveis.

    Outro ponto que merece atenção é que cada vez mais os produtos estarão conectados à internet, do nosso carro até a nossa geladeira. O que provavelmente vai mudar é que eles não precisarão de uma tela, como temos hoje, mas terão “voz” e irão conversar cada vez mais com a gente. Isso vai ajudar na maior inclusão, pois todas as barreiras tecnológicas irão cair. As máquinas agora falam a nossa língua, e não o contrário. E essa oralidade traz fluidez.

    Finalmente, as telas podem desaparecer, mas a informação continua chegando até nós. Pode ser como o AI Pin vislumbra, ou seja, poderemos ter uma projeção ou hologramas. Podemos chegar a dispositivos mais invasivos, como lentes que vão diretamente nos olhos, ou até mesmo interface sináptica, em que imagens serão impulsos elétricos enviados diretamente a nossos cérebros – e passamos a visualizá-las, sem precisar dos olhos.

    Tudo parece loucura, mas faz tempo que tem ciborgues que constroem realidades diretamente no cérebro.

    Fadiga de telas

    O som constante das notificações. As 90 guias abertas no browser, e que só aumentam – nunca diminuem. Os milhares de e-mails não lidos, a maioria deles spam, implorando pra você clicar.

    Nossa atenção está sob ataque atualmente, e a maioria de nós está familiarizada com a sensação que isso nos causa, que é o estresse, irritação, dificuldade de dormir e por aí vai.

    Os humanos não foram feitos para ver e pensar no mesmo ritmo que a tecnologia possibilita e evolui. Soma-se a isso a economia da atenção, cenário onde a atenção humana se torna um bem escasso e valioso, e que passou a ser monetizado por empresas e marketing.

    Toda essa demanda por atenção digital está levando a um cansaço generalizado entre os usuários, uma exaustão mental e física resultante do uso prolongado de dispositivos digitais. Na economia da atenção, a nossa atenção diminui e está cada vez mais fragmentada.

    Isso está trazendo uma série de riscos para a nossa saúde, e os mais atingidos são os jovens da geração Z e Alpha, que já nasceram em um mundo quase que totalmente digitalizado. Hoje, vemos o aumento de crianças com miopia, pois a iluminação artificial das telas desses aparelhos traz consigo riscos para a saúde ocular. Não olhamos mais para o horizonte. A distância máxima que focamos nos dia de hoje não passa de 1 metro.

    A falta de melatonina por conta da luz azul afeta nosso ritmo circadiano. Ao olharmos para telas ficamos menos empáticos, principalmente quando se trata de crianças. Não temos mais momentos de tédio, de olhar para o nada, e isso influencia inclusive na nossa criatividade. Nosso desempenho cognitivo também diminui.

    Por isso, tenho me forçado a usar cada vez menos o celular, e tem sido uma maravilha. Voltei a sentir o peso dos livros (a leveza do Kindle me incomoda), tenho tido menos dor de cabeça e saio sem achar que vão roubar meu celular a cada segundo. Faço tudo pelo smartwatch e só sinto falta de tirar fotos, algo que vou resolver em breve com um óculos inteligente.

    A invasão dos óculos inteligentes

    A realidade estendida (que abarcada realidade mista – RA/RV) e os óculos inteligentes desempenharão um grande papel na mudança para a computação sem tela. Essas tecnologias nos permitirão interagir com os computadores de uma forma muito mais envolvente e natural.

    A minha preferência por um óculos inteligente é porque eu já uso um, claro, mas a possibilidade de tirar fotos e filmar e obter informações que são projetadas no meu campo de visão me parece uma experiência mais integrada e intuitiva, e não vai me separar do mundo ao meu redor.

    Mas os óculos inteligentes são “sem tela”? Bem, de certa forma, a lente dos óculos pode ser considerada uma tela, pois exibe informações, mas, ao mesmo tempo, há uma diferença importante entre uma lente e uma tela tradicional, como a de um celular ou computador.

    A lente permite a gente enxergar através, a informação é integrada ao nosso campo visual e também não está separado, está em nós, é um vestível. A experiência é muito diferente de olhar para uma tela tradicional.

    Pode ser que, assim como ocorreu lá atrás com o Google Glass (2014), as pessoas passem a considerá-los invasivos e inúteis. Os óculos de RV e RA estão sendo menos procurados pelas pessoas, e mais usados por empresas e eventos. Um relatório divulgado pela IDC revelou o Apple Vision Pro ainda não atingiu a marca de 100 mil unidades comercializadas nos Estados Unidos.

    Assim como outros dispositivos sem grande sucesso, acho que todos desempenham papel importante no desenvolvimento, apesar de não serem adotados em massa, muitas vezes porque ainda são mais protótipos que produtos finais, ou não tem uma funcionalidade ampla (existem poucos aplicativos) para investirmos, no caso, US$ 3,5 mil (cerca de R$ 19 mil, na conversão direta).

    Mas olha só: os novos óculos inteligentes Ray-Ban da Meta, o Meta Smart Glasses, superou as vendas do modelo anterior em pouco meses, tanto que a Meta está considerando uma participação de até 5% no grupo EssilorLuxottica. Vários concorrentes estão aparecendo, como Brilliant Frame e o Solos, que vem com ChatGPT.

    Esse movimento não nos dá certeza de nada, mas pode indicar uma certa preferência.

    O mundo sem telas é possível?

    Em setembro do ano passado, saíram diversas notícias sobre o “iPhone da inteligência artificial” que estaria sendo desenvolvido por Jony Ive, nada mais nada menos que o ex-diretor de designer da Apple, e que foi responsável pelos seus produtos mais icônicos (do iMac translúcido, passando por iPod, iPhone até o iPad).

    Em uma parceria com a OpenAI, eles conseguiram investimento de US$ 1 bilhão do Softbank. Se isso se concretizar, este seria o primeiro produtor físico da OpenAI, e que poderia encapsular o modelo GPT-4o, lançado em maio deste ano, que por ser multimodal, interage através da voz.

    Se o “touchscreen”, originado no iPhone, ajudou a revolucionar nossa interação com a internet móvel, o som poderia ser a nova interface revolucionária de interação agora com a IA.

    Novamente, volta o filme “Ela” na cabeça, já que esse novo dispositivo já traz, em seu core, a possibilidade do fim das telas, ou pelo menos uma diminuição drástica da nossa necessidade de ver tudo que está sendo feito por nós ou executado por terceiros (na caso, a IA).

    Conversando com algumas pessoas, todas me falaram que preferiam interagir com as máquinas da mesma forma que interagimos com as pessoas. As gerações mais jovens, especialmente a Geração Z e a Alpha, estão crescendo em um ambiente saturado de tecnologia, e justamente por isso mostram sinais de cansaço e desejo por alternativas mais saudáveis e integradas, além de estarem mais abertas a tecnologias que oferecem conveniência sem a sobrecarga visual.

    A transição para um futuro sem telas é impulsionada pelo nosso cansaço, junto com tecnologia, que pode aliviar a fadiga digital e criar interações mais naturais e intuitivas, com uma presença invisível e mais integrada ao nosso cotidiano. Se as barreiras entre realidade física e virtual podem cair, a tela é uma delas.

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