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    Phelipe Siani
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    Phelipe Siani

    Empreendedor, palestrante e âncora na CNN Brasil desde 2019

    O paradoxo do mercado que tá vendendo como nunca e ainda assim demitindo muito

    Com fechamentos de estúdios de desenvolvimento gigantes, o mercado de games tá diante do que pode ser o principal desafio da própria história: entender o melhor modelo de negócio pro futuro

    Nos últimos meses, grandes estúdios produtores de jogos de videogame ou deixaram de existir ou demitiram centenas de funcionários no mundo todo. A Riot dispensou 530 pessoas, a Electronic Arts perto de 700. A Epic games mandou embora 860 funcionários, a Unity 1.800 trabalhadores. Até as fabricantes de console entraram nessa. Xbox liberou 1.900 pessoas e a Playstation, 900. Esse texto parte desses pontos pra falar sobre o momento atual da indústria dos games, mas pra gente entender o contexto geral do porquê a gente chegou aqui, deixa eu voltar umas boas casas nesse tabuleiro.

    Eu lembro bem das férias de julho de 1994, uma época fria do ano até numa cidade de praia, como a que eu cresci. Foi um mês muito marcante pra mim por vários motivos. Primeiro porque a seleção de futebol masculino do Brasil tinha acabado de ganhar o tetra, e, pra uma criança de 10 anos de idade, acompanhar isso de perto e em detalhes foi uma experiência que ajudou a moldar o conceito de paixão na minha cabeça. E, ainda na caçamba dessa empolgação, o meio do ano era quando normalmente a gente recebia meu avô em casa. A gente morava em Santos, no litoral de São Paulo, e ele era do Rio de Janeiro. Eu era muito ligado a ele e, sempre que ele vinha, era uma festa enorme. E dessa vez eu tinha uma expectativa ainda maior por um motivo que na minha cabeça era espetacular… ele tinha prometido comprar um Super Nintendo pra mim e pro meu irmão. Como a essa altura meu irmão já tava entrando na adolescência, e vivia programando rolês com os amigos, eu sabia que a proporção de uso do videogame ia ser na casa de 90% pra mim e 10% pra ele. Naquela época, ser praticamente dono de um videogame como esse era como ser alguém importante na roda de amigos (pelo menos entre os meus amigos, que normalmente não tinham famílias com grana pra ter videogame em casa).

    Nessa época, o Super Nintendo era o videogame que todo mundo queria ter. Era o mais democrático, o que mais tinha jogos, o mais fácil de usar, enfim, era o padrão ouro dos lares num momento em que, quando a nossa mãe queria que a gente fizesse outra coisa alimentava mitos como “desliga esse videogame porque ele dá defeito na televisão”, ou o clássico “você vai ficar cego de tanto que fica nesse jogo”. Olhando hoje, era até compreensível, já que a gente ainda não tinha dados suficientes pra analisar em profundidade os impactos dos games na vida das crianças. Mas eu te digo que, pelo menos na minha vida, os games tiveram uma função fundamental pra ensinar a importância do espírito esportivo, do esperar pela sua vez, de sempre tirar lições das derrotas, não cometer o mesmo erro mais de uma vez e por aí vai.

    O Super Nintendo foi um videogame que teve quase 800 jogos lançados. Eram muitas centenas de opções num momento em que quem não tinha grana pra comprar um jogo podia ficar com ele por 2 ou 3 dias alugando o cartucho na locadora mais perto de casa. Sim, isso era um modelo de negócio lucrativo até pouco mais de 2 décadas atrás. Alugar uma fita de videogame, como a gente chamava, era tão comum quanto alugar o próprio videogame pra jogar uma partida de Street Fighter 2 com um amigo durante 30 ou 60 minutos. E os arcades (ou máquinas de fliperama como a gente dizia em Santos) tavam em tudo que é lugar, eram também muito disputados e extremamente rentáveis pros donos. Eu tô dizendo tudo isso pra você entender como o mercado era COMPLETAMENTE diferente há duas décadas. Na virada do século, as lógicas eram outras, os modelos de negócio eram comparativamente bastante mais simples e as grandes empresas precisavam se preocupar, basicamente, com 2 pontos… produzir e ter bons jogos à disposição e vender cartuchos e consoles. Parece a mesma lógica de hoje? Acredite, não é!

    Olhando com a ótica de 2024, os jogos dos primeiros consoles, ainda que revolucionários, eram infinitamente mais simples. Mesmo! Ao ponto de, no caso do Atari, a gente, que gosta desse universo, conhecer a pessoa que fez o jogo. Sim, num passado nem tão remoto assim, um único programador podia ser o grande responsável por um jogo e fazer quase tudo dele. Mas à medida em que as novas plataformas foram aparecendo, os jogos foram ganhando muito mais complexidade e mais pessoas foram necessárias pra completar essas jornadas de desenvolvimento do começo ao fim. No meu Super Nintendo dos anos 1990, o jogo mais vendido foi “Super Mario World”, que foi feito por uma equipe de 10 pessoas. Hoje, os principais jogos têm algumas boas centenas de pessoas envolvidas ao longo de meses. Consegue entender o impacto que isso tem no negócio das empresas como um todo? Dá pra ter noção do quão mais cara fica a produção de um título com tantos salários sendo pagos, sem contar todos os outros custos envolvidos? Quanto mais empregos melhor, claro, mas isso não pode encarecer demais a produção num momento em que os jogos têm basicamente as mesmas tabelas de preços finais pro consumidor. Tudo tem que ser feito numa ponta de lápis que ainda convive com uma concorrência significativamente maior que no passado. Num momento em que a disputa é também por atenção e interesse. A concorrência, hoje, não é só mais o outro jogo ou a outra plataforma, vem também dos streamings de vídeo, de todas as redes sociais, dos jogos de celular muito mais simples e baratos de se fazer, quer dizer, mais do que nunca concorrência é basicamente tudo aquilo que faz o seu consumidor olhar pra outra coisa e não pro seu produto. E o que mais tem hoje em relação às últimas décadas é “ladrão” de tempo.

    Acho que, se você chegou até aqui nesse texto, já deu pra entender que, pra ganhar relevância e vender bem nos dias de hoje, um jogo precisa ser muito, muito bom. E jogos muito bons vêm sim sendo lançados, ou seja, as vendas tão acontecendo e quebrando recorde atrás de recorde. Se o “Super Mario World” vendeu, ao longo da vida, 20 milhões de cópias, a versão atual do jogo pro Nintendo Switch (o console da mesma empresa que fabricava o Super Nintendo) vendeu quase 12 milhões de unidades em poucos mais de 2 meses depois do lançamento. Os concorrentes Playstation e Xbox também têm títulos que vendem dezenas de milhões de cópias. Não precisa ser nenhum expert em business pra entender que o desafio não tá só em aumentar as vendas, tá em equilibrar os custos em relação ao faturamento. Enquanto o Mario dos anos 1990 foi feito por uma turma de amigos que cabia numa Kombi, o de agora teve, segundo o site MobyGames, o envolvimento de 400 profissionais.

    Uma alternativa seria fazer o que aconteceu nas indústrias da música e do audiovisual… partir pro streaming. As empresas de games até tão tentando. Sony, Nvidia, Google e Amazon já oferecem games por streaming, mas a necessidade de tecnologia e de uso de quantidade de internet é tão grande que faz esses serviços ainda não serem usados com força por todo mundo. Pensa o seguinte: Um filme que a gente assiste por streaming é um conteúdo que até pode ser em altíssima resolução, mas tá sendo “só” baixado de um servidor pra ser consumido por nós no momento em que a gente aperta o play. Não tem interação. Com a música é ainda mais simples se for só o áudio sem clipe ou nada do tipo. Tudo isso é muito mais rápido do que ter que jogar um game que baixa e manda informações pra esse servidor online o tempo todo, afinal, a gente tá jogando. Pra ser precisa, essa troca de dados pede uma banda (quantidade de internet boa disponível) enorme. E nem todo mundo tá preparado pra isso. A popularização do serviço de streaming pra jogos é hoje refém da própria evolução dos games, que são mais pesados e, via de regra, ainda rodam melhor jogando no console de casa. Pode parecer frescura pra quem não joga online, mas, pra quem joga, milésimos de segundo contam pra ir bem num jogo de tiro, por exemplo.

    Mas vamos supor que a internet avançou e hoje todo mundo assina um streaming de games e tem tudo lá, sem precisar comprar jogo nenhum. Se (ou quando) isso acontecer, é possível que a gente nem precise mais de console, fique tudo disponível só numa nuvem digital muito potente. Aí, o faturamento com a venda dos consoles vai deixar de existir, mais uma mudança no modelo de negócio dos fabricantes. Sem a necessidade de um console em cima do rack da sala, os estúdios e desenvolvedores podem (e provavelmente vão) querer lançar os próprios streamings, o que aconteceu com os estúdios de filmes que lançaram as plataformas autorais de assinatura. O consumidor dos jogos daquele estúdio vão poder jogar direto do celular ou da televisão, que, na prática, já é um computador e tende a ficar cada vez mais potente. Repito… isso até já acontece, mas, por experiência própria, jogar nesse formato ainda não oferece as mesmas sensações do console físico.

    Enfim, é só olhar pro passado do cinema e da música pra entender o presente dos videogames. Eu não tô defendendo lado nenhum nessa história e nem tô dizendo que esse é o melhor caminho pro mercado, mas é fato que o cenário que se desenha é esse. Analisando até aqui, eu não diria que o que existe hoje é uma crise na indústria dos games, como muita gente tem colocado. O que eu vejo é um momento muito importante de ajuste pra uma realidade de transição clara e inevitável de modelo de negócio. É uma mudança muito profunda pra ser feita sem nenhuma alteração importante nas estruturas mais tradicionais. Crise seria se não tivesse vendendo nada. O ponto não é esse… o ponto é quanto tá custando pra fazer versus o tanto de dinheiro que tá entrando!