Usinas hidrelétricas brasileiras já estão adaptadas às mudanças climáticas
Por que as chuvas extremas não afetam as grandes usinas hidrelétricas no país? A explicação está nos projetos dessas estruturas, que já consideravam os eventos extremos, mesmo em obras realizadas há décadas
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As chuvas extremas têm sobrecarregado as estruturas urbanas que, em sua quase totalidade, não estão preparadas para esses eventos. No ambiente rural, a situação não é diferente e, com frequência, ocorrem quedas de barreiras e trechos inteiros de estradas são levados pelas águas.
Em meio a um cenário em que os exemplos extremos se acumulam, as grandes usinas hidrelétricas (UHE) têm permanecido seguras. Entre as grandes UHE brasileiras, não há histórico significativo de colapsos ou rupturas parciais das estruturas em decorrência de fortes chuvas, mesmo após décadas de operação.
Entretanto, cabem ressalvas. A Barragem da Pequena Central Hidrelétrica de Apertadinho (RO) rompeu devido a problemas de manutenção. A Barragem 14 de Julho (RS) teve ruptura parcial durante as chuvas excepcionais de maio de 2024. São situações que servem de alerta.
Olhar pelo retrovisor não basta
No projeto de uma UHE considera-se o histórico das chuvas na bacia hidrográfica que vai manter a represa com quantidade suficiente de água para garantir sua operação cotidiana. Entretanto, isso não é suficiente. Seria o equivalente a dirigir olhando apenas pelo espelho retrovisor e imaginar que o que vem pela frente será a reprodução do percurso que fizemos.
É necessário, cada vez mais, prospectar o que vai acontecer. Teremos chuvas suficientes para manter a operação como antes? Será que elas poderão ser extremas e sobrecarregar as estruturas, levá-las a um rompimento parcial ou colapso?
Em relação a eventos extremos, os projetistas dessas barragens adotam dois conceitos que se mostram cada vez mais importantes: chuvas milenares, chuvas deca milenares e precipitação máxima possível.
Chuvas milenares representam precipitações muito intensas que ocorreriam, aproximadamente, uma vez a cada mil anos (chamada de Taxa de Retorno ou TR = 1.000 anos). As deca milenares são chuvas ainda mais intensas e raras, e que ocorreriam, teoricamente, com intervalo de dez mil anos (TR = 10.000 anos).
A Precipitação Máxima Possível (PMP) é o resultado de um estudo teórico que considera o pior cenário meteorológico imaginável para a bacia hidrográfica onde se encontra a UHE. O gráfico a seguir exemplifica como essas chuvas se distribuiriam ao longo de 30 dias.
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A figura é uma simulação para efeitos retóricos, mas exemplifica uma situação que poderia ser usual. Chuvas normais ocorreriam a uma taxa diária ao redor de 23 mm, totalizando no mês cerca de 120 mm. É claro que essas chuvas não precisam ocorrer todos os dias. Podem concentrar-se durante alguns dias com valores medianos em torno de 30 mm enquanto em outros não haveria chuva. Ao final de um ano, teríamos cerca de 1400 mm de chuva.
Em uma chuva com taxa de recorrência (TR) de mil anos, o valor poderia subir praticamente dez vezes e chegar a 225 mm por dia, quase duas vezes o previsto para todo um mês de chuvas normais. Ao final do mês, teríamos o acumulado de mais de 1200 mm. Esse total seria o equivalente a 85% do volume esperado para todo um ano de chuvas normais (1400 mm).
Agora, entramos no cenário de projeto estrutural das barragens. Uma chuva que ocorreria a cada 10 mil anos teria um valor diário de 293 mm ou um valor mensal superior a 1500 mm (maior do que o total anual de chuvas normais).
Por sua vez, a Precipitação Máxima Possível (PMP) atingiria um valor diário de 380 mm e mensal de mais de 2000 mm. Teoricamente, esse seria o pior cenário imaginável, com bases cientificas, em relação ao volume de chuvas.
Em uma estrutura que vai armazenar volumes muito expressivos de água, o pior cenário tem de ser considerado. Ao se falar em uma chuva que poderá ocorrer a cada 10 mil anos, não significa que ela vai ocorrer daqui a 10 mil anos. Ele poderá ocorrer hoje ou amanhã e, depois de um período de milhares de anos, ocorrer novamente. Esse prazo é apenas uma referência da excepcionalidade dessa chuva. Mesmo assim, é importante considerar que ela vai acontecer.
O problema atual é que chuvas excepcionais têm se tornado cada vez mais frequentes. Considero que as mudanças climáticas já estão nos levando a um cenário em que chuvas antes milenares possam ocorrer com frequência bem maior.
Em quanto tempo?
Para efeitos didáticos, estou simplificando as análises. É claro que uma chuva muito intensa que ocorra durante uma ou duas horas, dependendo da área total atingida, poderá não gerar um volume suficiente para sobrecarregar uma UHE. Há que se considerar a duração de chuvas com taxa de recorrência (TR) de 10 mil anos ou em condição de Precipitação Máxima Possível. Além disso, é necessário avaliar como estava o nível de um reservatório caso ocorra uma chuva no padrão TR = 10.000 anos ou no cenário de PMP.
Portanto, tomando como base o gráfico, caso uma chuva com aproximadamente 200 mm aconteça, isso não significa que estamos em um cenário de chuvas que ocorrem a cada 1 mil ou 10 mil anos. É necessário acompanhar como isso vai se desenrolar nos dias e semanas subsequentes. Um monitoramento contínuo é feito inclusive para controlar, caso seja necessário, a abertura das comportas da UHE para dar vazão a volumes mais expressivos de água.
Expertise
Rapidamente, vejamos alguns exemplos de longevidade: Furnas tem mais de 60 anos, Sobradinho e Itaipu mais de 40 anos, Porto Primavera 25 anos. O fato de UHE projetadas há várias décadas considerarem eventos extremos e resistirem aos volumes muito expressivos de água e chuvas muito intensas mostra que temos expertise nacional para avaliar esses cenários e incluí-los no projeto de grandes estruturas.
Nesse sentido, quando falam que não é possível prever ou não há o que fazer diante de eventos extremos, constatamos que isso não procede. Há décadas que os piores cenários são prospectados e considerados no projeto e na execução de UHE. E elas estão aí, resistindo e funcionando. Temos conhecimento nacional amplamente consolidado. Por que não podemos aproveitar essa expertise em outros setores e em obras de infraestrutura?