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    Mari Palma
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    Mari Palma

    Sou jornalista, com pós em moda, neurociência e comportamento. Também sou embaixadora da Marvel, fã de Friends e Beatles, 4 vezes tia e mãe de cachorro

    #CNNPop

    O que eu aprendi crescendo com um pai com deficiência

    Do egoísmo adolescente ao maior amor que uma filha pode sentir - um caminho bastante difícil que me fez uma pessoa muito melhor

    Há poucos dias, eu assisti ao filme “No Ritmo do Coração” que conta a história de uma família de surdos. Todos trabalham juntos e a filha adolescente, a única que ouve, tem o papel de “traduzir” o mundo para os pais e o irmão e vice-versa. Quando ela chega perto da idade de ir pra faculdade, ela descobre uma nova paixão: a música. Ela começa, então, a fazer aulas com o professor da escola até o momento em que ela precisa decidir: seguir a vida dela e o sonho de fazer a faculdade de música ou continuar ao lado dos pais.

    Esse filme mexeu MUITO comigo porque eu sou filha de um pai com deficiência. Meu pai era cego, e eu me vi muito na protagonista, em todos os momentos que ela tentou fazer o mundo mais acolhedor pra família. Tem uma cena em que o pai pede pra ela cantar uma música pra ele e, quando ela começa, ele coloca as mãos na garganta dela pra sentir a vibração da voz. Ele, sem conseguir ouvir o som, encontrou um jeito de sentir a voz da filha e entender a paixão dela por aquele território desconhecido.

    Eu acho que nunca chorei tanto em uma cena de filme. De verdade. Inclusive tô chorando agora só de lembrar e escrever aqui pra vocês. Não vou mentir: dói demais saber que o seu pai ou sua mãe nunca vai conseguir te ouvir ou ver. É um sentimento extremamente egoísta que a gente tem quando é adolescente e sabe nada da vida. Eu tinha muita raiva. Frustração. Desespero. Tudo ao mesmo tempo. Queria, do alto da minha arrogância, resolver o problema. Dar um jeito de devolver a visão pro meu pai, sei lá. Tinha que ter um jeito.

    Eu caí naquele pensamento capacitista de achar que “ele estava sofrendo e precisava de ajuda”. Só consegui me acalmar quando entendi que aquilo não era sobre mim. Eu percebi que doía mais em mim do que nele, e que a deficiência não definia quem ele era. Eu não tinha que sentir pena ou qualquer coisa parecida. Eu só precisava ser a filha dele, e fazer o possível pra entender que a falta de visão era só uma característica. Foi a partir daí que a gente aprendeu a conviver naquele novo cenário e a dividir momentos muito parecidos com os do filme.

    Por exemplo: toda vez que eu cortava meu cabelo, eu chegava do salão e ele me pedia pra passar a mão pra “ver” o comprimento. Ou quando coloquei meu piercing no nariz e ele queria saber o tamanho (ele foi contra no começo, mas depois aceitou). Eu e meus irmãos também descrevíamos os lances dos jogos de futebol ou a aparência dos jogadores que ele mais gostava. Ou até mesmo a nossa. Meu pai perdeu a visão quando eu era uma criança, então quando eu entrei na adolescência, ele chegou a me perguntar “como eu era”. Eu peguei a mão dele e coloquei no meu rosto pra ele me “ver” naquela nova versão. Foi assim que ele conheceu os netinhos também quando eles chegaram.

    Eu tive MUITOS momentos assim com ele. A gente aprendeu a encontrar maneiras de sentir um ao outro, de ficar o mais perto possível. Ele não queria perder nada, e eu não queria que ele se sentisse excluído do mundo. Foi assim que eu aprendi a valorizar momentos que muitas vezes a gente não presta atenção. Por isso, eu sempre falo que meu pai me ensinou muitas coisas. A principal delas foi: enxergar o mundo com o coração e não com os olhos. A visão é importante, sim, mas ela também pode cegar a gente pro que realmente importa. E ele nunca deixou a gente esquecer disso.

    Infelizmente meu pai não tá mais aqui fisicamente, mas eu sinto ele a todo momento em tudo que eu faço. E quando eu vejo histórias como a do filme, eu lembro o quanto eu tive sorte de crescer com ele, em um mundo em que muitas crianças crescem sem saber o que é o amor de pai. No meu caso, esse amor sempre transbordou, então hoje eu faço questão de dividir um pouco com o mundo, na esperança de que ele consiga abraçar aqueles que nunca foram abraçados. Meu Dia dos Pais não é mais o mesmo há algum tempo, mas eu nunca vou parar de agradecer e pedir pra que essa data tenha cada vez menos motivos pra lamentar e mais pra comemorar. E que um dia todo mundo possa se sentir acolhido como eu me senti, com um amor que não vê diferença e que vem do coração, na forma mais pura e sincera que existe.

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