Brasil é resiliente ao progresso de forças extremistas, avalia presidente do Fórum de Integração Brasil Europa
Em entrevista à CNN, o professor Vitalino Canas traz uma visão externa da Brasil pós-8 de janeiro e comenta julgamentos de temas polêmicos como aborto e porte de drogas


As instituições estão sob risco, mas têm se mostrado resilientes ao avanço do extremismo, reforçando a capacidade da democracia de se defender de ataques e reagir a eles. A afirmação é do professor de Direito Constitucional da Universidade de Lisboa.
Em entrevista à CNN, o jurista, advogado e ex-deputado em Portugal traz uma visão externa sobre o Brasil após os atos antidemocráticos de 8 de janeiro – e também analisa o papel do Supremo Tribunal Federal (STF) no jogo de forças entre os Poderes.
Presidente do Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe), Canas monitora com atenção o cenário brasileiro. Autor da lei que reformulou a política antidrogas em seu país, ele avaliou os impactos da decisão do STF sobre a descriminalização da maconha.
“Em Portugal, havia um receio de que a descriminalização pudesse traduzir-se num aumento do consumo. Isso não aconteceu. Inclusive, diminuiu”, disse, salientando que o Brasil pode trilhar o mesmo caminho.
Em relação à despenalização do aborto, Canas sugere cautela. “Não pode haver uma oposição de forças, mas um diálogo progressivo que vá permitindo a criação de consenso”, disse, na entrevista.
O jurista também comentou sobre os impactos do atentado contra o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e as declarações recentes do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro. Confira:
O Poder Judiciário tem ganhado cada vez mais protagonismo no jogo de forças entre os Poderes – e por vezes é criticado pelos parlamentares por “legislar” em seu lugar. A que atribui essa escalada?
No final do século 18, quando foi instituída a fiscalização de constitucionalidade pela Suprema Corte norte-americana, já havia ecos desse mesmo debate. Durante todos esses séculos, a política protestou contra o intervencionismo judicial, como se está agora a suceder. No Brasil, há uma característica que não encontramos em outros países: a Constituição Federal de 1988, emendada mais de 130 vezes, distingue-se de todas as congêneres, mesmo na América Latina. Ela vai muito ao pormenor. Quanto mais detalhada, mais margem dá para a apreciação do tribunal constitucional, no caso, o STF. É uma situação paradoxal: o Poder Legislativo emenda a Constituição, dá cada vez mais poder ao STF – que tem competência e o dever de fiscalizar a constitucionalidade das leis – e depois os próprios membros do Legislativo queixam-se de o STF exercer essa função. É um paradoxo, porque se o Legislativo não quisesse um poder amplo do STF, deveriam ter feito uma Constituição mais restrita.
O sr. já afirmou que, para combater o retrocesso democrático, é preciso exercer uma “democracia militante”. Acha que estamos neste caminho no Brasil?
Esse conceito surgiu para responder a fenômenos diferentes do que atualmente as democracias enfrentam. Foi pensado para combater forças, personalidades, movimentos e partidos que se opunham ao próprio conceito de democracia, querendo substituí-la por outra forma de governo, não democrático. Hoje em dia a maior parte das ameaças vem de dentro da própria democracia, por parte de pessoas que alegam que não querem destruir a democracia. São forças que se utilizam dos instrumentos do constitucionalismo para procurar criar mecanismos que permitam a preservação do poder. E o que pode resolver isso é o fortalecimento das instituições democráticas, o equilíbrio entre os poderes, a independência dos tribunais constitucionais. A democracia, apesar de tudo, mostra capacidade de resiliência ao progresso das forças mais extremistas – que, embora eu considere significativo e preocupante, ainda não está pondo em causa a capacidade da democracia de se defender.
Foi o que se verificou no Brasil após os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023?
Esse episódio foi uma cópia do que se sucedeu no Capitólio, em Washington. Não vejo uma organização que buscasse objetivamente um golpe de Estado, mas um conjunto de malfeitores que queriam destruir tudo, e isso ainda é pior, porque no golpe as pessoas alegadamente querem alguma melhoria para o país. Me impressionou como a democracia reagiu. Houve uma reação imediata das autoridades públicas, das instituições, as pessoas estão cumprindo pena e tudo segue funcionando normalmente. Isso é prova de que as instituições correm risco, mas têm forças para se defender dos ataques e reagir a eles.
Recentemente, o STF julgou a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal. Como um dos autores da lei que reformulou a política de drogas em Portugal, como vê os impactos dessa decisão?
Estamos a concluir 25 anos da reforma, feita em 2000, e faremos um balanço dos resultados. Em Portugal, implementamos a lei de descriminalização do consumo de entorpecentes e depois foram aprovadas leis de prevenção de riscos, em uma estratégia global de combate à toxicodependência e ao tráfico de drogas. Os números são favoráveis. Havia um receio de que a descriminalização pudesse traduzir-se num aumento do consumo. Isso não aconteceu, inclusive diminuiu. Isso se deve a dois aspectos: primeiro, termos integrado os consumidores de drogas no sistema de saúde, desviando-os do sistema prisional, que não tinha respostas para eles. Não se pode ambicionar 100% de sucesso, mas parte significativa dessas pessoas vão deixar de consumir. Deixamos de ter as forças de segurança e o sistema prisional pressionado por um imenso número de consumidores, muitas vezes jovens, que saíam piores do que quando entraram. A experiência é positiva. À época da implementação, não havia consenso interno, partidos à direita não estavam de acordo, mas hoje o tema se consolidou está fora das discussões políticas.
Vê chances de esse cenário se repetir no Brasil?
Em Portugal, criamos estruturas específicas para dissuasão da toxicodependência, algo que creio não estar em discussão no Brasil. Isso é muito importante. Sempre que alguém é encontrado a consumir na rua, as autoridades não o leva às quadras da polícia, mas a um sistema multidisciplinar, que faz uma análise caso a caso, uma espécie de triagem e elabora um plano específico para aquele cidadão, no âmbito do Serviço de Saúde. No Brasil, vocês têm o Sistema Único de Saúde (SUS), que é robusto, e creio ser possível encontrar também essa possibilidade. No Brasil, há regionalidades que precisam ser levadas em conta pelas entidades encarregadas de monitorar esse fenômeno, para poder tornar a resposta adaptativa a cada realidade.
O STF julgou o caso das drogas, mas ainda está pendente na Corte a ação que despenaliza o aborto. O presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, diz que o tema ainda não está maduro o suficiente na sociedade para ser julgado pela Corte. Qual a sua avaliação?
Essa é uma questão divisiva em todas as sociedades. Os Estados Unidos resolveram o problema na década de 1960 e reviram recentemente, portanto não é um tema que possa se considerar fechado para sempre, seja em um sentido ou de outro. É um conceito que está muito próximo das considerações da ordem moral, da consciência. O consenso não existe de partida, e para que se possa fazer qualquer coisa, não pode haver uma oposição de forças, mas um diálogo progressivo que vá permitindo a criação desse consenso. A jurisdição constitucional tem um papel muito importante. No caso brasileiro, que tem tradição de rinhas morais e religiosas, acredito que isso requeira uma leitura muito atenta e atualizante para se levar isso a julgamento.
Em que medida o atentado sofrido pelo ex-presidente dos EUA Donald Trump muda os rumos da eleição americana? Entende que o atual presidente, Joe Biden, deveria desistir da candidatura?
O atentado pode ter alguma implicação, mas é difícil saber de que tipo, porque ainda estamos a bastante tempo da data da eleição, diferentemente do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, que sofreu um atentado perto da eleição, gerando um “efeito simpatia” que sempre se verifica nesses casos. Quanto a Trump, ele tem uma personalidade capaz de atrair ódio e também apoios entusiásticos, e a forma como ele reagiu pode ter suscitado a ideia de força e determinação. Mas o “efeito simpatia” pode se diluir, porque ainda faltam quatro meses para a eleição. Já Biden tem mostrado alguma fragilidade e isso não é exclusivamente por causa da idade – há muitos exemplos de líderes que exerceram funções até mais tarde. Há preocupação com o nível de sua saúde e a sua capacidade física de enfrentar os problemas. Portanto, nessa altura, acho que está tudo em aberto. Não me parece que aqueles que dizem que Trump já ganhou possam estar seguros. Só mais em cima da eleição é que se pode ter uma noção exata das tendências.
Voltando para a América Latina, o presidente da Venezuela, Nicolas Maduro, conclamou a população a garantir a sua vitória, sob pena de “um banho de sangue dos fascistas”. A declaração gerou polêmica. O que se pode esperar da eleição do dia 28?
A dramatização é sempre um sinal de algum desespero. Em qualquer eleição, quando uma das partes, para evitar mudanças, dramatiza excessivamente as possíveis consequências, isso revela alguma leitura desesperada da situação. Entendo que isso não tenha efeito sobre as pessoas que, segundo as sondagens divulgadas, têm mostrado grande vontade de mudança. As pessoas já não se guiam por essas questões, pelo menos as que já estão com vontade muito firme de mudança. Não é a ideia de que os efeitos serão mais ou menos dramáticos que vai dissuadi-las. Se calhar, a declaração pode ter até um efeito contraproducente para ele.
O Fórum de Lisboa foi muito celebrado em Portugal e muito criticado no Brasil. Na avaliação do sr., qual foi o saldo das discussões?
Todas as grandes organizações suscitam celeuma e controvérsia. E essa é uma grande realização. O que vejo aqui, e por isso fico um bocadinho surpreendido com as críticas, é uma mobilização de saber, conhecimento e criatividade, envolvendo autoridades, pensadores, acadêmicos, investigadores, empresários, políticos, advogados, economistas, ativistas. Você pode ter, numa mesma mesa, diante de uma audiência extremamente qualificada, um ministro português, um professor de universidade americana, um senador brasileiro e um diretor de uma grande empresa, expressando seus pontos de vista e os confrontando com pontos de vista que podem ser completamente diversos, de forma perfeitamente cordial e dialógica. Todos estão ali genuinamente a debater ideias que permitam melhorar os respectivos setores, e não pensando em obter alguma consequência ou resultado imediatos. Falamos de inteligência artificial, questões geoestratégicas, governabilidade, segurança pública, sustentabilidade global… Portanto, tivemos uma amplitude temática que é difícil de encontrar.