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    Lourival Sant'Anna
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    Lourival Sant'Anna

    Analista de Internacional. Fez reportagens em 80 países, incluindo 15 coberturas de conflitos armados, ao longo de mais de 30 anos de carreira. É mestre em jornalismo pela USP e autor de 4 livros

    Milei não resiste e comunicado do G20 rejeita posições de Trump

    Presidente argentino chega como emissário informal do americano mas não consegue bloquear temas caros a ambos

    O comunicado final da cúpula do G20 projeta uma visão de mundo oposta àquela defendida pelo presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, em uma série de temas centrais: mudanças climáticas, imigração, tributação, igualdade de gênero, regulação e as guerras da Ucrânia e da Faixa de Gaza.

    O resultado significa o fracasso do presidente argentino, Javier Milei, que participou na semana passada de um evento conservador com Trump na Flórida e chegou ao Rio como uma espécie de emissário informal do líder americano, com a missão de bloquear essas pautas caracterizadas por ambos como de uma esquerda liberal identificada com a cultura “woke”.

    Clima

    O comunicado reafirma o compromisso das 20 maiores economias do mundo, representadas por 19 países e a União Europeia, com o Acordo de Paris, do qual Trump retirou os Estados Unidos assim que assumiu seu primeiro mandato, em janeiro de 2017.

    “Nós encorajamos uns aos outros a apresentar compromissos de emissões líquidas zero de gases do efeito estufa/neutralidade climática de maneira nacionalmente determinada, levando em consideração o Acordo de Paris e nossas diferentes circunstâncias, caminhos e abordagens nacionais”, diz o documento, na tentativa de reduzir o impacto que a volta de Trump à Casa Branca terá sobre as ambições dos outros grandes emissores.

    A diplomacia ambiental se retroalimenta dos esforços de uns e outros países. Trump considera a mudança climática uma “farsa” e um de seus lemas é “perfure, baby, perfure”, referindo-se aos poços de petróleo e gás. Milei também diz que o aquecimento global é “coisa de socialista”.

    Super-ricos

    A taxação de pessoas no topo da renda também é uma pauta fortemente rejeitada por Trump e Milei, que se colocam contra impostos de maneira geral. “Com total respeito à soberania tributária, nós procuraremos nos envolver cooperativamente para garantir que indivíduos de patrimônio líquido ultra-alto sejam efetivamente tributados”, declara o texto final.

    Imigração

    Trump ameaça os imigrantes com deportação em massa. Seu futuro vice-chefe de Gabinete, Stephen Miller, opõe-se a todo tipo de imigração, incluindo legal, e esteve por trás, no primeiro mandato, do banimento de muçulmanos e da separação de crianças de seus pais, ambos restringidos pela Justiça americana.

    “Nós reafirmamos nosso compromisso de apoiar migrantes, incluindo trabalhadores migrantes e refugiados, em nossos esforços por um mundo mais inclusivo, em conformidade com políticas, legislações e circunstâncias nacionais, assegurando pleno respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, independentemente de seu status migratório”, enfatiza o comunicado.

    Gênero

    Trump e Milei também se opõem às políticas de promoção da diversidade e igualdade de gênero, no centro do que eles chamam depreciativamente de cultura woke. “Nós reconhecemos que todas as mulheres e meninas enfrentam barreiras específicas devido a diversos fatores, tais como falta de acesso a saúde, educação, desenvolvimento da carreira, igualdade salarial e oportunidades de liderança”, diz o texto.

    “Reconhecendo que a violência baseada em gênero, inclusive a violência sexual contra mulheres e meninas, é preocupantemente alta nas esferas pública e privada, nós condenamos todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas e lembramos nosso compromisso de acabar com a violência baseada em gênero, inclusive a violência sexual, e combater a misoginia on-line e off-line.”

    Crianças palestinas desalojadas em carroça durante retirada do norte de Gaza após ordem de retirada da região • 06/10/2024 REUTERS/Hussam Al-Zaanin

    Gaza

    O comunicado não menciona os reféns israelenses nos cativeiros do Hamas, e se concentra no flagelo dos palestinos: “Ao expressar nossa profunda preocupação com a situação humanitária catastrófica na Faixa de Gaza e a escalada no Líbano, enfatizamos a necessidade urgente de expandir o fluxo de assistência humanitária e reforçar a proteção de civis e exigir a remoção de todas as barreiras à prestação de assistência humanitária em escala. Destacamos o sofrimento humano e os impactos negativos da guerra”.

    O texto prossegue: “Afirmando o direito palestino à autodeterminação, reiteramos nosso compromisso inabalável com a visão da solução de dois Estados, onde Israel e um Estado palestino vivem lado a lado, em paz, dentro de fronteiras seguras e reconhecidas, consistentes com o direito internacional e resoluções relevantes da ONU”.

    O comunicado defende o direito de retorno dos mais de 60 mil israelenses que deixaram suas casas no norte de Israel por causa dos foguetes e mísseis do Hezbollah: “Estamos unidos em apoio a um cessar-fogo abrangente em Gaza, em conformidade com a Resolução n. 2735 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, e no Líbano, que permite que os cidadãos retornem em segurança para suas casas em ambos os lados da Linha Azul”.

    Trump pretende retomar o apoio incondicional a Israel que caracterizou seu primeiro governo, em contraste com o governo de Joe Biden, que pressionou contra a condução da guerra na Faixa de Gaza, a abertura de outra frente no Líbano e as provocações ao Irã ao longo do ano, como o bombardeio do consulado iraniano em Damasco e os assassinatos do líder do Hamas, Ismail Haniyeh, em Teerã, e do Hezbollah, Hassan Nasrallah, em Beirute.

    Ele indicou embaixador em Israel Mike Huckabee, que se nega a chamar a Cisjordânia por esse nome, preferindo os nomes bíblicos Judeia e Samaria, recusa os termos “ocupação” e “assentamentos”. São posições que buscam legitimar a ocupação e pretendida anexação do território palestino por Israel, sepultando definitivamente o sonho da solução de dois estados.

    Ucrânia

    Como aconteceu nas cúpulas de 2022 na Indonésia e de 2023 na Índia, a China e a Rússia bloquearam uma condenação explícita à invasão da Rússia. Mas Estados Unidos e Europa conseguiram manter uma linguagem que não endossa a posição da China e do Brasil em favor de um cessar-fogo que congele o conflito, aceitando a ocupação russa.

    “Saudamos todas as iniciativas relevantes e construtivas que apoiam uma paz abrangente, justa e duradoura, mantendo todos os Propósitos e Princípios da Carta da ONU para a promoção de relações pacíficas, amigáveis e de boa vizinhança entre as nações”, declara o comunicado. É uma linguagem que condena a ocupação sem dizer isso explicitamente, porque a Carta da ONU defende a soberania dos estados.

    Essa formulação entra em conflito também com a pretensão de Trump de impor um acordo no qual a Ucrânia faça concessões territoriais, o que não pode ser encarado como “paz justa e duradoura”, porque além de injusta é um estímulo para a Rússia se preparar para uma nova investida futura contra a Ucrânia.

    Inteligência Artificial

    Trump se coloca contra o que considera qualquer excesso de regulação, seja às redes sociais, seja à inteligência artificial (IA). O texto afirma: “Para garantir o desenvolvimento, a implantação e o uso seguro e confiável da IA, é necessário abordar a proteção dos direitos humanos, a transparência e a explicabilidade, a justiça, a responsabilidade, a regulamentação, a segurança, a supervisão humana apropriada, a ética, os preconceitos, a privacidade, a proteção de dados e a governança de dados”

    E vai além: “Nós procuraremos promover uma abordagem de governança/regulatória pró-inovação para a IA, que limite os riscos e, ao mesmo tempo, nos permita nos beneficiar do que ela tem a oferecer”.

    A Argentina é um país importante e Milei, um líder eloquente. Mas não o suficiente para fazer frente a uma complexa elaboração de consensos como a do G20. O mesmo não se poderá dizer de Trump a partir do ano que vem. Trump não tem grande interesse em temas internacionais, mas para aquilo que é importante para ele, como os temas elencados acima, ele pode ser bastante disruptivo.

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