Ataques de Israel a missão da ONU no Líbano reforçam lógica da força bruta
Unifil é uma força de manutenção e não de imposição da paz, e não pode conter nem o Hezbollah nem o Exército israelense
Os ataques de Israel contra a Força Interina das Nações Unidas no Líbano (Unifil) são mais um capítulo da falta de regras e de autoridade que não seja baseada na força bruta nessa e em outras áreas do mundo. De um lado, os ataques ferem a lei internacional; de outro, se as resoluções da ONU fossem respeitadas, as recorrentes invasões do Líbano por Israel não teriam sido necessárias.
Guarnições dos capacetes azuis da ONU já foram atacadas três vezes pelas Forças de Defesa de Israel (IDF) desde o início da ofensiva terrestre há duas semanas. Dois soldados do Sri Lanka foram feridos. O comandante da missão, Jean-Pierre Lacroix, disse que não acatará a recomendação do primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, para que as tropas internacionais se retirem do Sul do Líbano.
Israel argumenta que o Hezbollah usa os soldados da ONU como “escudos humanos”. O governo israelense afirmou que levará adiante a ofensiva terrestre e os bombardeios a Beirute, ignorando o apelo do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para que cesse os ataques aéreos à capital libanesa. No total, os ataques israelenses já haviam matado 2.309 pessoas até a noite de segunda-feira (14).
Quatro soldados israelenses foram mortos e mais de 60 pessoas ficaram feridas em um ataque do Hezbollah com drones na segunda-feira. Outros oito soldados da IDF tinham sido mortos em combates contra o Hezbollah nas duas últimas semanas. A promessa de Netanyahu de levar adiante a campanha tem também como pano de fundo essas baixas israelenses.
A Unifil foi formada em 1978, depois da primeira invasão do Líbano por Israel, que teve como objetivo expulsar as forças da Organização de Libertação da Palestina (OLP). Israel voltou a invadir o Líbano em 1982, com o mesmo propósito, e em 2006, para tentar desmantelar o Hezbollah.
A resolução 1701, do Conselho de Segurança da ONU (CS/ONU), que determinou o cessar-fogo depois daquela invasão, prevê que o Hezbollah não mantenha armas e combatentes ao sul do Rio Litani. O grupo xiita não cumpre essa regra, e ataca o norte de Israel a partir dessa área de 860 km2.
A Unifil supervisiona essa área, que vai da Linha Azul, a fronteira reconhecida entre o Líbano, Israel e Síria, e o Rio Litani. Esse mandato foi estabelecido em 2000, quando Israel se retirou da chamada Zona de Segurança que ocupava desde 1982.
É com base na incapacidade da Unifil de conter a presença do Hezbollah que Israel se vê na posição de ignorar sua autoridade. Essa, no entanto, não é uma força de imposição, mas de manutenção da paz, o que lhe dá um caráter mais de observação do que propriamente de contenção. De acordo com seu mandato, os capacetes azuis só podem abrir fogo para a própria proteção.
Isso não significa necessariamente um viés contra Israel. Em 2006, o general libanês Adnan Daoud , teve de renunciar ao comando da Unifil depois de ser filmado oferecendo chá aos soldados israelenses invasores no quartel-general da missão. Uma equipe de TV israelense acompanhava a incursão terrestre. Eu estava no Líbano na época e entrevistei Daoud. Ele explicou que não tinha capacidade militar nem mandato da ONU para conter a invasão israelense.
Ao ignorar a autoridade da Unifil, Israel segue um padrão que remonta à criação do Estado judaico, em 1948. Desde então, consecutivos governos israelenses, das mais diversas tendências políticas e ideológicas, têm ignorado as resoluções do CS/ONU para que devolvessem territórios ocupados militarmente, destinados à população palestina, ou pertencentes à Síria, no caso do Golan.
Desde o início da campanha na Faixa de Gaza, há um ano, Israel atacou sistematicamente instalações da Unrwa, a agência da ONU para os refugiados palestinos, incluindo escolas, hospitais e acampamentos de desabrigados e deslocados.
O governo israelense buscou a mesma justificativa para esses ataques, de que o Hamas usa essas instalações como escudo, e também procurou desacreditar a agência com a informação de que 12 de seus 14 mil funcionários na Faixa de Gaza participaram dos ataques do Hamas do dia 7 de outubro.
Em discursos de Netanyahu, do chanceler Israel Katz e do embaixador israelense na ONU, Gilad Erdan, a ONU é retratada como uma instituição que se opõe a Israel.
Logo no início da crise desencadeada pelos ataques do Hamas, o secretário-geral da ONU, António Guterres, declarou em um discurso que eles “não ocorreram no vácuo”, o que foi denunciado por Netanyahu como justificativa ao terrorismo.
Entretanto, é impossível entender o Oriente Médio, ou qualquer outra região, sem considerar a história recente e mais longínqua. Neste momento, Israel, Hezbollah, Hamas e Irã estão escrevendo mais um capítulo da história da região, segundo o qual a solução das disputas se dá pela força bruta, e não pela negociação ou pela lei.