“DUT eletrônico”: modernização trouxe uma fraude a reboque
Concessionárias, empresários e financeiras têm sido prejudicados com o falso registro de caminhões novos e usados


“Você está ferrado!” Está foi a resposta simplória (mas real) do policial da delegacia de trânsito quando o dono de uma empresa de transportes em Belo Horizonte (MG) foi reclamar ter sido vítima de uma fraude. E o pior é que o policial, exatamente por conhecer os meandros da burocracia governamental, estava sendo rigorosamente honesto com a vítima.
A história: o cidadão comprou dois caminhões seminovos em São Paulo. Foi ao CET-MG e procedeu corretamente com todos os procedimentos burocráticos (que não são poucos) para transferi-los. O documento atual, eletrônico, chama-se APTVe (Autorização para Transferência de Veículo). É o substituto eletrônico do antigo DUT (impresso) e, por isso, ganhou o apelido de “DUT eletrônico”.
Dias depois, surgem no sistema informatizado do Detran os mesmos caminhões registrados em nome de outra empresa, no Pará (Carajás). Tudo “correto”: número do chassis, motor, placas (Mercosul), mas registrados no outro estado. A empresa dona dos caminhões em Minas começa então uma longa peregrinação por delegacias especializadas para descobrir como podem aparecer registrados no outro estado. A delegacia não sabe, não tem ideia, nem recursos para averiguar a fraude.
A vítima imagina os vários riscos que pode estar correndo. A polícia do outro estado é acionada, mas se declara incapaz de resolver o problema. A legítima proprietária dos caminhões tenta trocar as placas: “Não é possível”, diz o delegado, “clonagem de placa tem que ser provada e o processo é longo”.
Passados alguns dias, o dono dos caminhões, ao comentar o problema, fica sabendo de uma outra empresa na mesma situação. E também que até uma concessionária de caminhões foi vitima da mesma fraude.
Parte do mistério, então, é desvendada: no caso do caminhão zero km, as concessionárias recebem os caminhões da fábrica, e eles ficam estocados sem placas até serem vendidos. É quando se descobre ser impossível registrar a venda, pois a quadrilha foi mais rápida e registrou-os enquanto estavam estocados no pátio.
Mas, afinal, e os caminhões que rodam com o registro fraudulento? Não seria possível descobri-los para resolver a situação?
No caso da concessionária, nenhum outro veiculo roda com placas clonadas ou irregulares: o golpe aplicado por diversas quadrilhas em diversas regiões (preferencialmente, em concessionárias de caminhões, pelo valor mais elevado) é simplesmente para obter um falso financiamento que tem o veículo como garantia. O prejuízo de fato será do banco que financiou a “compra” inexistente e da concessionária que ficará meses sem condições de faturar os veículos.
No caso dos dois caminhões seminovos, existem outros dois circulando de fato. E todo este imbróglio surgiu (ou foi extremamente facilitado) depois que se “modernizou” o sistema de transferência de veículos, do antigo DUT para o APTVe.
Por que a facilidade? Pela possibilidade de se obter, pela internet, todos os dados do veículo para emissão de uma nota fiscal fraudulenta, ou a emissão da “DUT eletrônica” (APTVe) também falsificada. Com números de chassis e motor, cor e outras características, é possível emitir uma Nota Fiscal – pois os números estão de acordo com os emitidos pela fábrica – e registrar o veículo em outro estado.
No caso do dono da empresa em BH, ele conseguiu rastrear a operação para descobrir que, além do financiamento, existem de fato dois caminhões rodando com suas placas. Pertencem a uma empresa de refrigerantes localizada num endereço falso em Carajás (PA).
Por isso, o policial tinha razão ao prever muita “canseira”, pois o dono do caminhão não tem nenhuma culpa no cartório, mas “está ferrado” assim mesmo…
Esta é uma das diversas situações surreais em que o cidadão não tem rigorosamente culpa nenhuma, mas perde tempo, dinheiro e, às vezes, até credibilidade na praça.
Nota do editor: Entramos em contato com o CET-MG, que esclareceu, em nota, que a ATPV-e vem sendo utilizada em todo o país e que em caso de “veículo dublê ou clone” em circulação, o proprietário do veículo original “pode requerer a instauração do processo administrativo pela CET-MG, que irá averiguar a necessidade de troca de placas e a baixa da pontuação decorrente de possíveis infrações”. Basta acessar o site do CET-MG para ter mais informações e enviar a documentação para o e-mail clonagem@transito.mg.gov.br. É preciso também registrar a ocorrência pelos números 197 ou pelo Disque Denúncia Unificado – 181.