OPINIÃO
Brasil: abundância na produção, escassez na mesa
O Brasil se destaca por suas dimensões continentais e pela diversidade de ecossistemas, além de possuir recursos abundantes. Reconhecido como um dos maiores exportadores de alimentos do mundo, o país também desfruta de uma posição significativa no mercado global agrícola. No entanto, apesar de nunca ter sofrido as consequências de uma guerra, enfrenta o paradoxo de ser uma nação que desperdiça alimentos enquanto 8,7 milhões de pessoas sofrem de insegurança alimentar grave, ou seja, fome.
O problema é global. Segundo a FAO, cerca de um terço de todos os alimentos produzidos no mundo é desperdiçado anualmente. Apenas na cadeia produtiva, aproximadamente 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são perdidas por ano, o que equivale a 30% da produção total. Durante esse processo, mão de obra, recursos naturais, financeiros, oportunidades e alimentos são literalmente jogados fora. Além de impactar a economia global, o descarte de comida afeta o meio ambiente, uma vez que a produção de alimentos desperdiçados representa de 8% a 10% das emissões globais de gases de efeito estufa.
No Brasil, aproximadamente 55 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas por ano, desde a lavoura até a casa do consumidor final. Nos lares, o desperdício está mais associado a questões comportamentais.
Apesar desses números impressionantes, é importante ressaltar que resolver o problema do desperdício não significa o fim da fome. A fome é um fenômeno complexo influenciado por diversas causas, incluindo a pobreza e o acesso limitado à educação, oportunidades de emprego e à própria comida. Não podemos ignorar, no entanto, o contraste alarmante entre o desperdício de alimentos e os milhões de pessoas que enfrentam a incerteza de não saber se terão o que comer na próxima refeição.
Combater o desperdício é um vetor importante nessa luta, especialmente no Brasil. Hábitos culturais propiciam o desperdício, como mostram dados de pesquisa da Embrapa/FGV sobre a relação dos brasileiros com os alimentos: 77% dos brasileiros acham importante que o alimento seja fresco, 68% consideram importante ter a despensa cheia, 61% preferem fazer uma grande “compra do mês”, 59% não se preocupam se houver comida demais e 52% consideram importante ter fartura. Armazenar os alimentos em locais inadequados e não os consumir antes de estragarem também contribui para o desperdício.
Há muito a ser feito e precisamos falar mais sobre esse assunto. Reconhecemos que essa cultura está profundamente enraizada em nossa sociedade, e é urgente uma mobilização nacional para reduzir significativamente a disparidade entre o que é produzido e o que é descartado.
Diversos fatores ao longo de toda a cadeia contribuem para este cenário, como a falta de informação do consumidor, que desperdiça cerca de 94 kg de comida por ano — muitas vezes própria para consumo e com alto teor de nutrientes. Além disso, a ausência de planejamento e infraestrutura para o armazenamento adequado e transporte de produtos, juntamente com os desafios enfrentados na manufatura e no varejo, agravam a situação.
Criar, desenvolver e testar novas abordagens é fundamental. Diariamente, lidamos com os custos elevados do retrabalho, e muitos sofrem as consequências da desordem, desestruturação e desorganização. Isso resulta em impactos significativos no nosso potencial econômico, desequilíbrio no abastecimento e grande impacto ambiental.
Iniciativas bem-sucedidas para combater o problema já existem e mostram o caminho. A Infineat possui uma plataforma que conecta supermercados a ONGs, permitindo acesso diário a alimentos para quem precisa. A GoodTruck transporta comida de onde sobra para onde falta, por meio de parcerias com distribuidores e mercados. A Connecting Food direciona o que seria descartado por empresas a organizações sociais que atendem a pessoas em situação de vulnerabilidade social. A Gooxxy trabalha com a recolocação de produtos alimentícios e não alimentícios no mercado. A Food To Save incentiva o consumo consciente ao comercializar com desconto produtos que seriam descartados. Essas organizações atuam com base em conexões,
tecnologia e dados, como também fazemos no Pacto Contra a Fome. Dados confiáveis nessa área são fundamentais, pois não se pode melhorar o que não se mede.
Reduzir o desperdício de alimentos deve ser uma responsabilidade compartilhada por todos: produtores, empresas, varejistas, governos e cidadãos. A incoerência de sermos um dos países que mais produz e exporta alimentos enquanto ainda enfrentamos o problema da fome em muitas de nossas comunidades deixa uma ferida aberta no Brasil que clama por atenção e ação. Reavalie suas prioridades e comportamentos, começando por como você lida com o consumo e descarte de produtos em sua casa e seu trabalho.