Coração de porco com células-tronco humanas pode virar alternativa de tratamento
Se os transplantes em humanos nos próximos ensaios clínicos forem bem-sucedidos, os corações híbridos personalizados poderão ser usados para salvar milhares de vidas em todo o mundo
A primeira vez que a bióloga molecular Doris Taylor viu as células-tronco do coração baterem em uníssono em uma placa de Petri, ela ficou fascinada. “Isso realmente mudou minha vida”, disse Taylor, que dirigiu pesquisas de medicina regenerativa no Instituto do Coração do Texas, em Houston, até 2020.
Esse objetivo tornou-se realidade. Na quarta-feira (1º), na conferência Life Itself, um evento de saúde e bem-estar apresentado em parceria com a CNN, Taylor mostrou ao público a estrutura de um coração de porco infundido com células-tronco humanas –criando um coração humano viável e pulsante que o corpo não rejeitará. Por quê? Porque é feito dos próprios tecidos dessa pessoa.
“Agora podemos realmente imaginar a construção de um coração humano personalizado, levando transplantes de coração de um procedimento de emergência em que você está tão doente para um procedimento planejado”, disse Taylor à plateia.
“Isso reduz seu risco, eliminando a necessidade de drogas [que evitam rejeição]. Usando suas próprias células para construir esse coração, reduz o custo e você não estará no hospital com tanta frequência, então melhora sua qualidade de vida”, disse.
Estreando no palco com ela estava BAB, um robô que Taylor ensinou meticulosamente a injetar células-tronco nas câmaras de “corações fantasmas” dentro de um ambiente estéril. Enquanto o público do Life Itself assistia ao BAB funcionando em um ambiente estéril, Taylor mostrou vídeos da massa branca perolada chamada “coração fantasma” começando a ficar rosada.
“É a primeira chance de realmente curar o que mata um grande número um de homens, mulheres e crianças em todo o mundo: as doenças cardíacas. E então eu quero torná-lo disponível para todos”, disse Taylor sob aplausos do público.
“Ela nunca desistiu”, disse Michael Golway, principal inventor do BAB e presidente da Advanced Solutions, que projeta e cria plataformas para a construção de tecidos humanos.
“A qualquer momento, a Dra. Taylor poderia facilmente ter dito ‘Cansei, isso simplesmente não vai funcionar’. Mas ela persistiu por anos, lutando contra contratempos para encontrar o tipo certo de células nas quantidades certas e condições certas para permitir que essas células sejam felizes e cresçam.”
Dando à luz um coração
O fascínio de Taylor por corações em crescimento começou em 1998, quando ela fazia parte de uma equipe da Duke University que injetou células no coração de um coelho, criando um novo músculo cardíaco. Depois, começaram os testes em humanos.
“Estávamos colocando células em regiões danificadas ou com cicatrizes do coração e esperando que isso superasse o dano existente”, disse ela à CNN. “Comecei a pensar: ‘e se pudéssemos nos livrar daquele ambiente ruim e reformar a casa?'”
O primeiro sucesso de Taylor veio em 2008, quando ela e uma equipe da Universidade de Minnesota lavaram as células do coração de um rato e começaram a trabalhar com o esqueleto translúcido deixado para trás.
Logo, ela passou a usar corações de porco, devido à sua semelhança anatômica com os órgãos humanos.
“Pegamos o coração de um porco e lavamos todas as células com um xampu suave para bebês”, disse ela. “O que restou foi uma matriz extracelular, uma estrutura transparente que chamamos de ‘coração fantasma’.”
“Então nós infundimos células dos vasos sanguíneos e as deixamos crescer na matriz por algumas semanas”, disse Taylor. “Isso criou uma maneira de alimentar as células que adicionaríamos porque restabelecemos os vasos sanguíneos do coração”.
O próximo passo foi começar a injetar as células-tronco imaturas nas diferentes regiões da estruturas do coração de porco, “e então tivemos que ensinar as células a crescer”.
“Devemos estimulá-las eletricamente, como um marca-passo, mas muito suavemente no início, até que ficassem cada vez mais fortes. Primeiro, as células em um ponto se contraem, depois elas, em outro ponto se contraem, mas não estão juntas”, disse Taylor.
“Com o tempo elas começam a se conectar umas às outras na matriz e em cerca de um mês, elas começam a bater juntos como um coração”, complementa.
Mas esse não é o fim da “maternidade” que Taylor e sua equipe tiveram que fazer. No momento seguinte, ela teve de nutrir o coração, medindo-lhe a pressão sanguínea e ensinando-o a bombear.
“Nós enchemos as câmaras do coração com sangue artificial e deixamos as células do coração se apertarem contra ele. Mas devemos ajudá-los com bombas elétricas, ou eles morrerão”, explicou.
As células também são alimentadas com oxigênio de pulmões artificiais. Nos primeiros dias, todas essas etapas tinham que ser monitoradas e coordenadas manualmente 24 horas por dia, sete dias por semana, disse Taylor.
“O coração tem que comer todos os dias, e até construirmos as peças que tornaram possível monitorar eletronicamente os corações, alguém tinha que fazer isso –e não importava se era Natal, Ano-Novo ou seu aniversário”, destacou. “Foram necessários grupos extraordinários de pessoas que trabalharam comigo ao longo dos anos para que isso acontecesse.”
Mas uma vez que Taylor e sua equipe viram os resultados da criação, quaisquer sacrifícios que fizeram se tornaram insignificantes, “porque então a beleza acontece, a mágica acontece”. “Nós injetamos o mesmo tipo de células em todo o coração, então todas começaram da mesma forma”, salientou a médica.
“Mas agora, quando olhamos no ventrículo esquerdo, encontramos células cardíacas do ventrículo esquerdo. Se olharmos no átrio, elas se parecem com células cardíacas atriais, e se olharmos no ventrículo direito, elas são células cardíacas do ventrículo direito”, explicou.
“Então, com o tempo, eles se desenvolveram com base em onde se encontram e cresceram para trabalhar juntos e se tornar um coração. A natureza é incrível, não é?”
Bilhões e bilhões de células-tronco
Quando a criação ganhou vida, Taylor começou a sonhar com um dia em que seus corações protótipos pudessem ser produzidos em massa para milhares de pessoas nas listas de transplantes, muitas das quais morreriam enquanto estavam na fila de espera. Mas como se dimensiona um coração?
“Percebi que, para cada grama de tecido cardíaco que construímos, precisávamos de 1 bilhão de células cardíacas”, disse Taylor. “Isso significava que para um coração humano do tamanho de um adulto, precisaríamos de até 400 bilhões de células individuais. Agora, a maioria dos laboratórios trabalha com 1 milhão ou mais de células, e as células do coração não se dividem, o que nos deixou com o dilema: de onde essas células viriam?”
A resposta chegou quando o pesquisador biomédico japonês Shinya Yamanaka descobriu que células da pele humana adulta poderiam ser reprogramadas para se comportar como células-tronco embrionárias ou “pluripotentes”, capazes de se desenvolver em qualquer célula do corpo. A descoberta de 2007 rendeu ao cientista um Prêmio Nobel, e suas “células-tronco pluripotentes induzidas (iPS)” logo ficaram conhecidas como “fatores Yamanaka”.
“Agora, pela primeira vez, podemos tirar sangue, medula óssea ou pele de uma pessoa e cultivar células desse indivíduo que podem se transformar em células do coração”, explicou Taylor. “Mas a escala ainda era enorme: precisávamos de dezenas de bilhões de células. Levamos mais dez anos para desenvolver as técnicas para fazer isso.”
A solução? Um favo de fibra semelhante ao de uma abelha, com milhares de orifícios microscópicos onde as células podiam se fixar e ser nutridas.
“A fibra absorve os nutrientes como um filtro de café. As células têm acesso a alimentos ao seu redor e isso permite que elas cresçam em números muito maiores. Podemos passar de cerca de 50 milhões para 1 bilhão de células em uma semana”, mencionou Taylor.
“Mas precisamos de 40 bilhões ou 50 bilhões ou 100 bilhões, então parte de nossa ciência nos últimos anos tem aumentado o número de células que podemos cultivar”.
Outra questão: cada coração precisava de um ambiente puro e livre de contaminantes para cada etapa do processo. Toda vez que uma intervenção tinha que ser feita, ela e sua equipe corriam o risco de abrir o coração para infecção –o que poderia ser causa de morte do órgão.
“Vocês sabem quanto tempo leva para injetar 350 bilhões de células manualmente?” Taylor perguntou ao público da Life Itself. “E se você tocar em alguma coisa? Você acabou de contaminar o coração inteiro.”
Certa vez, seu laboratório sofreu um mau funcionamento elétrico e todos os corações morreram. Taylor e sua equipe ficaram quase inconsoláveis.
“Quando algo acontece com um desses corações, é devastador para todos nós”, admitiu Taylor. “E isso vai soar estranho vindo de um cientista, mas eu tive que aprender a fortalecer meu próprio coração emocionalmente, mentalmente, espiritualmente e fisicamente para passar por esse processo.”
Robô auxiliar
O BAB, abreviação de BioAssemblyBot, é um berço “uber-estéril” criado pela Advance Solutions que poderia segurar o coração e transportá-lo entre cada etapa do processo, preservando um ambiente livre de germes. Taylor ensinou agora a BAB o processo específico de injetar as células que ela desenvolveu meticulosamente na última década.
“Quando a Dra. Taylor estava injetando células, ela levou anos para descobrir onde injetar, quanta pressão colocar na seringa e a melhor velocidade e ritmo para adicionar as células”, lembrou Golway, criador do BAB.
“Um robô pode fazer isso de forma rápida e precisa. E como sabemos, não há dois corações iguais, então BAB pode usar o ultrassom para ver dentro da via vascular desse coração específico, onde a Dra. Taylor está trabalhando às cegas, por assim dizer”, Golway acrescentou. “É emocionante assistir. Há momentos em que o cabelo da minha nuca literalmente se arrepia.”
Taylor deixou a academia em 2020 e atualmente está trabalhando com investidores privados para levar sua criação às massas. Se os transplantes em humanos nos próximos ensaios clínicos forem bem-sucedidos, os corações híbridos personalizados de Taylor poderão ser usados para salvar milhares de vidas em todo o mundo.
Somente nos EUA, cerca de 3.500 pessoas estavam na lista de espera de transplante de coração em 2021.
“Isso sem contar as pessoas que nunca entram na lista, devido à idade ou condições de saúde”, acrescentou Taylor. “Se você é uma mulher pequena, se você é uma minoria sub-representada, se você é uma criança, as chances de conseguir um órgão que combine com seu corpo são baixas. Se você conseguir um coração, muitas pessoas ficam doentes ou perdem seu novo coração dentro de uma década. Podemos reduzir custos, podemos aumentar o acesso e podemos diminuir os efeitos colaterais. É um ganha-ganha.”
Taylor acredita que, um dia, pessoas vão depositar suas próprias células-tronco em uma idade jovem, tirando-as do armazenamento quando necessário para desenvolver um coração –e um dia até um pulmão, fígado ou rim.
“Digamos que eles têm doenças cardíacas na família”, disse ela. “Podemos planejar com antecedência: fazer crescer suas células para os números que precisamos e congelá-las, então, quando forem diagnosticadas com insuficiência cardíaca, puxe uma estrutura da prateleira e construa o coração em dois meses.”
“Sinto-me humilde e privilegiada por fazer este trabalho e orgulhosa de onde estamos”, acrescentou. “A tecnologia está pronta. Espero que todos estejam conosco para o passeio, porque isso muda o jogo.”