Depoimentos de ex-comandantes expõem os limites do jogo duro constitucional de Bolsonaro
Forças Armadas, a exemplo de instituições como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, foram levadas ao limite para que não ocorresse a ruptura tramada
Os depoimentos dos ex-comandantes do Exército e da Aeronáutica no governo Jair Bolsonaro (PL) são relatos detalhados daquela que, possivelmente, foi a mais extrema prática de jogo duro constitucional no Brasil. Pelos testemunhos do general Marco Antonio Freire Gomes e do brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, as Forças Armadas, a exemplo de instituições como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, foram levadas ao limite para que não ocorresse a ruptura tramada – evitar a posse do eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e manter Bolsonaro no poder.
Jogo duro constitucional é um conceito do direito e da ciência política conhecido há duas décadas, apresentado pela primeira vez em 2004 pelo professor emérito da Universidade Harvard Mark Tushnet.
Nas palavras do autor, em entrevista de 2020 à revista Estado da Arte, “jogo duro constitucional é um rompimento com as práticas anteriores não exigidas pela Constituição, mas que haviam sido adotadas como normas comportamentais.”
Mais recentemente, Steven Levistky e Daniel Ziblatt usaram em Como as Democracias Morrem o termo “regras não escritas” para se referir a condutas que, embora não previstas pela Constituição, deveriam ser seguidas por todo agente político. Quando deixam de ser cumpridas, o próprio regime democrático corre risco.
Bolsonaro tem questionado em declarações públicas, assim como seus advogados, que nada foi feito que não tivesse previsão na Constituição. De fato, a Carta Magna prevê estado de sítio ou de defesa, assim como as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO). Mas não está escrito que esses dispositivos não podem ser acionados para contestar o resultado eleitoral.
Foi isso o que Freire Gomes evocou, conforme o relato de Baptista Jr, ao afirmar que, caso Bolsonaro decretasse uma GLO ou estado de defesa ou de sítio, “teria que prender o Presidente da República”. Detalhe: seria um general do Exército dando ordem de prisão a um capitão da reserva que, naquele momento, era o comandante-supremo das Forças Armadas.
Os depoimentos dos dois ex-comandantes têm força não só por terem sido dados na condição de testemunhas – ou seja, obrigados a falar a verdade. São relatos verossímeis com o que se viu em público ao longo do mandato de Bolsonaro e com a crescente percepção de que havia risco de ruptura institucional.
Não por acaso, o Congresso aprovou em 2021 a Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito, que incluiu no Código Penal os artigos que agora respaldam as investigações em curso e as condenações de quem atacou as sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro.
Vinte anos depois de Tushnet cunhar o termo, democracias mundo afora ainda são desafiadas pelo jogo duro constitucional e não há receita pronta para lidar com esse fenômeno. É certo que respostas institucionais importam, como tornar crime tentar um golpe de estado, mas as condutas dos atores políticos importam ainda mais.