The Cure lava a alma dos fãs e encerra ótima edição do Primavera Sound SP
Evento foi marcado pelo calor intenso e shows de Pet Shop Boys, Beck, Killers e Marisa Monte, que celebrou Rita Lee
O coro uníssono que entoou o refrão da última música do The Cure, banda inglesa que encerrou a segunda versão paulistana do festival Primavera Sound neste fim de semana, foi um retrato da ótima edição do evento catalão em terras brasileiras. O público ainda comparecia em peso mesmo no final do domingo à noite e ampliava o refrão de “Boys Don’t Cry” que o vocalista Robert Smith – com sua voz ainda impecável, mesmo 40 anos depois – puxou no final de mais de duas horas de apresentação, fazendo o público encarar a longa volta pra casa do Autódromo de Interlagos com a alma lavada.
O Cure dominou o público sem maiores dificuldades e confirmou sua importância como principal atração do festival fazendo vários de seus hits serem cantados a plenos pulmões – ao mesmo tempo em que convidava o público às suas viagens instrumentais em canções com quase dez minutos sem dispersar a atenção dos presentes, todos olhando fixos e sorridentes para o palco. Entre as poucas novidades no repertório da atual turnê pela América Latina, só a inclusão de “Charlotte Sometimes” (que só tocaram em três dos seis shows) e “Hot Hot Hot!!!” (que só foi tocada em São Paulo, talvez por conta da temperatura do evento). O resto das mais de duas horas de show contou com clássicos como “Pictures of You”, “Lovesong”, “Just Like Heaven”, “In Between Days”, “The Walk”, “Friday I’m in Love” e “Close to Me”. A banda estava em ponto de bala e Robert Smith claramente feliz com o show.
[cnn_galeria active=”4923643″ id_galeria=”4923532″ title_galeria=”Veja fotos do Primavera Sound São Paulo 2023″/]
Não foi o único show do tipo a ter esse tipo de resposta. A multidão cantando o refrão de “Domino Dancing” dos Pet Shop Boys, entrando em transe com Slowdive e se acabando no show dos Killers no sábado e o repetindo o refrão de “Loser” do Beck e cantando todas as músicas do Bad Religion no domingo também foram grandes momentos do fim de semana. As brasileiras melhor posicionadas na escalação – Marisa Monte e Marina Sena, que tocaram no fim da tarde do sábado e do domingo respectivamente – também tiveram esses momentos, embora a veterana carioca tivesse uma oferta muito maior de hits para o público cantar junto.
Marisa ainda proporcionou um dos momentos mais emocionantes da edição ao quebrar a quarta parede de sua apresentação e interagir com o público, problema que afeta a maioria de seus shows, em que parece encastelada numa redoma. E o fez de forma apaixonada ao receber o muso e parceiro da saudosa Rita Lee, o guitarrista Roberto de Carvalho, para tocar duas músicas: “Doce Vampiro”, que acabou de regravar, e “Mania de Você”.
A sintonia entre público e artistas, característica também da edição de 2022 do festival, marcou a versão deste ano que teve vários momentos de mútua interação e vocais em inglês cantados a plenos pulmões por um público brasileiro extasiado com a música. Embora tenha sofrido com o decréscimo de artistas contemporâneos (os maiores nomes da edição deste ano poderiam ter liderado um evento semelhante quinze ou vinte anos atrás), a conexão entre o palco e a audiência poderia ter desandado caso o festival não funcionasse tão bem – mesmo em condições adversas.
Os quase 30 graus na hora em que o Cure encerrou sua apresentação – isso onze da noite de um domingo – foi uma pequena amostra do calor inclemente que rachou os cocurucos dos fãs e o rosto de boa parte dos artistas durante o sábado e domingo. As poucas nuvens no céu e as poucas áreas de sombra colocaram o público debaixo do sol forte em grande parte do festival, que abriu suas portas ao meio-dia nos dois dias, obrigando fãs das bandas brasileiras que abriram o festival, como Getúlio Abelha, Mateus Fazeno Rock, Sophia Chablau & Uma Enorme Perda de Tempo e Aiyé, a torrar debaixo de um calor de mais de 35 graus.
Foi um desafio para a produtora T4F, que assumiu a produção da versão paulistana do festival de Barcelona este ano, realizado logo após o trágico fiasco que foram os shows cariocas de da turnê de Taylor Swift no Brasil. O calor absurdo da ocasião – que culminou com a morte de uma fã e centenas de pessoas no ambulatório – misturou-se com a proibição que a empresa estabeleceu sobre o público levar água e alto preço dos produtos, inclusive de água, durante o evento.
A edição do Primavera Sound São Paulo deste ano foi uma resposta que a própria empresa deu ao desastre carioca. Além de não impedir que o público entrasse com suas próprias garrafas de água, outras tantas foram fartamente distribuídas durante o evento, principalmente para quem estava próximo aos palcos e não queria sair dali para ficar perto do ídolo. Além de distribuir água, o festival também criou pontos de hidratação – divulgados nos telões entre os shows – e até providenciou protetor solar para o público encarar o sol. Mas mesmo com esses bem vindos paliativos (pena que precisou que alguém morresse para que esses parâmetros mudassem), a falta de locais com sombra e a localização de dois palcos que colocavam os artistas para tocar olhando para o sol reforçaram o calor intenso como a principal marca desse Primavera.
Outro ponto positivo foi a arquitetura do evento. Ao contrário de outros grandes eventos de música realizados no mesmo Autódromo de Interlagos, o Primavera Sound paulistano não criou corredores que funcionavam como gargalos para o público atravessar estandes de patrocinadores entre um palco e outro, criando situações insuportáveis para multidões. O trânsito entre os três palcos principais e a tenda de DJs era livre e todo o evento foi realizado como num grande parque, com palcos, lojas de patrocinadores e área de alimentação sempre em pontos abertos em que era possível ver o horizonte do evento. A proximidade entre alguns palcos acabou fazendo o som de alguns shows se sobreporem e quem quisesse ficar mais atrás quase sempre ouvia o ruído residual de um palco mais próximo. As filas também foram escassas, à exceção do domingo, em que o público teve que esperar mais para conseguir bebidas.
Mesmo com tudo funcionando, o artístico do festival também ficou devendo, principalmente ao compararmos com a edição do ano passado, que teve Travis Scott, Jessie Ware, Lorde, Mitski, Phoebe Bridgers, Caroline Polachek, Arca, Japanese Breakfast, Mitski e Charlie XCX. Até os artistas veteranos – como Björk, Arctic Monkeys, Interpol, Beach House e Father John Misty – estavam divulgando álbuns novos, ao contrário do Cure, Beck, Killers, Bad Religion, Slowdive ou Hives. O evento até teve sua dose de contemporaneidade, com bons shows de Soccer Mommy, Black Midi, Carly Rae Jepsen, Blessed Madonna, Roisín Murphy e El Mató a Un Policía Motorizado, mas ficou devendo mais artistas contemporâneos como principais nomes de cada um dos dias.
Também fez falta o auditório do festival, tradicional espaço no festival de Barcelona em que é possível assistir a shows menores em um local fechado para uma audiência sentada. Na edição de 2022, o palco reuniu Hermeto Pascoal, Tim Bernardes, Senor Coconut, Amaro Freitas, Julia Mestre, Josyara, Giovani Cidreira e José González, em apresentações que poderiam acontecer nos palcos maiores, mas com menor impacto. Na edição deste ano, que ajuda a ampliar a ideia de diversidade (também sonora) no evento, esse palco sequer existiu.
Apesar dessas considerações em relação à faixa etária dos artistas – que inevitavelmente impactou no público, que tinha quase 40 anos (uma mudança radical em relação aos vinte e poucos da edição passada) -, o Primavera Sound São Paulo funcionou muito bem e se consolida como um dos melhores eventos ao vivo do Brasil atualmente.