Número real de mortos na Índia pode ser de quase 1 milhão, segundo especialistas
A Índia tem problemas graves para contabilizar também o número de infectados, que pode ser 30 vezes maior que os oficiais 17,6 milhões de casos
A Índia, lar do pior surto de Covid-19 em andamento no mundo, relatou mais de 17,6 milhões de casos desde o início da pandemia, no ano passado. Mas o número real, temem os especialistas, pode ser até 30 vezes maior — o que significa mais de meio bilhão de casos.
As mortes, que oficialmente estão na casa das 200 mil, também estão subnotificadas e o número real pode ser de 400 mil ou de quase 1 milhão no pior cenário, segundo um estudo da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos.
Profissionais de saúde e cientistas na Índia há muito alertam que as infecções por Covid-19 e mortes relacionadas são significativamente subnotificadas por várias razões, incluindo infraestrutura deficiente, erro humano e baixo número de testes.
As testagens têm aumentado muito após a primeira onda, mesmo assim, a verdadeira extensão da segunda onda que está devastando a Índia é provavelmente muito pior do que os números oficiais sugerem.
“É amplamente conhecido que tanto os números de casos quanto os números de mortes são contados a menos, sempre foram”, disse Ramanan Laxminarayan, diretor do Centro de Dinâmica, Economia e Política de Doenças em Nova Déli.
“No ano passado, estimamos que apenas uma em cerca de 30 infecções foi detectada por meio de testes. Os casos relatados são uma subnotificação séria do número verdadeiro de infecções”, disse. “Desta vez, os números de mortes são provavelmente subnotificações graves, e o que estamos vendo é muito mais mortes do que o que foi oficialmente relatado.”
A CNN entrou em contato com o ministério da saúde do país para comentar sobre as alegações de subnotificação.
Como a primeira onda começou a diminuir em setembro do ano passado, o governo apontou sua baixa taxa de mortalidade como um sinal de seu sucesso em lidar com o surto, e para justificar sua decisão de suspender algumas restrições. O primeiro-ministro, Narendra Modi, comemorou os números baixos como um aumento da “confiança do povo” e disse, à época, que “todo o país sairá vitorioso na batalha contra a Covid-19”, de acordo com um comunicado à imprensa de agosto do ano passado.
Essa batalha ainda está em andamento. O número diário de mortes no país está projetado para continuar subindo até meados de maio, de acordo com modelos de previsão do Instituto de Métricas e Avaliações de Saúde da Universidade de Washington.
O número de mortos pode chegar a mais de 13 mil por dia, mais de quatro vezes o número de mortos diários atuais, mostram as previsões.
“Não creio que nenhuma família tenha sido poupada da morte por Covid”, disse Laxminarayan. “Há uma pessoa morta em cada família, eu imagino.”
Testes insuficientes
A capacidade de teste da Índia aumentou drásticamente desde a primeira onda. Na mesma época do ano passado, o país estava testando menos de meio milhão de pessoas por dia. Agora, “eles estão fazendo cerca de 2 milhões de testes por dia”, disse a cientista-chefe da Organização Mundial de Saúde (OMS), Soumya Swaminathan.
Mas, segundo a cientista, “isso ainda não é suficiente porque a taxa média nacional de testes positivos é de cerca de 15% — em algumas cidades, como Déli, é de até 30% ou mais”, disse. “Isso significa que há muitas pessoas por aí que estão infectadas, mas que não foram detectadas por causa da capacidade de testagem. Só saberemos mais tarde qual é o número real de pessoas infectadas.”
Existem algumas razões para essa insuficiência de testes, de acordo com Bhramar Mukherjee, professor de bioestatística e epidemiologia da Universidade de Michigan. A mais óbvia é que, um paciente assintomático — com a chamada “infecção silenciosa” — pode simplesmente não saber que foi infectado e, portanto, nunca fazer o teste.
Existem também diferentes estruturas de notificação de casos em diferentes cidades e estados, e os testes podem ser menos acessíveis nas áreas rurais. Os residentes mais pobres podem não ter condições de se afastar do trabalho ou da sua residência para fazer o teste.
“Todos os países, até certo ponto, enfrentaram esse problema de classificar com precisão as mortes relacionadas à Covid, mas acho que na Índia o problema é bastante grave”, disse Mukherjee.
Mas pesquisas sorológicas, que testam a existência de anticorpos no sistema imunológico para indicar se alguém foi exposto ao vírus, dão aos cientistas uma medida melhor de quantas pessoas podem estar infectadas na realidade.
Pesquisas nacionais anteriores mostraram que o número dessas pessoas é “pelo menos 20 a 30 vezes maior do que o relatado”, disse Swaminathan, da OMS.
Quando aplicada aos últimos números relatados na terça-feira (27), essa estimativa pode elevar o total de casos na Índia para mais de 529 milhões.
Subnotificação de mortes
Mesmo antes da pandemia, a Índia já tinha um problema crítico de subnotificação de mortos.
A infraestrutura de saúde pública subfinanciada do país significa que, mesmo em tempos normais, apenas 86% das mortes em todo o país são registradas nos sistemas governamentais. E apenas 22% de todas as mortes registradas têm uma causa oficial, certificada por um médico, de acordo com o especialista em medicina comunitária Hemant Shewade.
A maioria das pessoas na Índia morre em casa ou em outros lugares, não em um hospital, então os médicos geralmente não estão presentes para determinar a causa da morte — um problema que se agravou na segunda onda, com hospitais sem espaço. Sem ter para onde ir, cada vez mais pacientes da Covid estão morrendo em casa, em ambulâncias ociosas, em salas de espera e fora de clínicas lotadas.
Também existem problemas logísticos, como falta de informação na base de dados nacional ou erro humano. E essas questões são ainda mais graves nas áreas rurais.
O diretor do National Centre for Disease Informatics and Research (NCDIR), um órgão do Conselho Indiano de Pesquisa Médica (ICMR), disse em um relatório de 2020, publicado no periódico Lancet, que era difícil garantir que os estados seguissem as diretrizes de identificação de todas as mortes por coronavírus confirmadas e suspeitas.
“De acordo com a lei existente, o NCDIR não é obrigado a registrar dados sobre mortes suspeitas ou prováveis ??nos estados, então, não posso dizer se as mortes estão sendo certificadas”, disse ele.
Na terça-feira, a Índia relatou quase 198 mil mortes por coronavírus. No entanto, Mukherjee estima que as fatalidades da Covid podem ser de duas a cinco vezes subnotificadas, o que significa que um número real de mortos de pode chegar a 990 mil.
O número de funerais em massa, cremações e acúmulo de corpos lançou dúvidas sobre as mortes relatadas por oficiais em várias cidades nas últimas semanas. As discrepâncias podem ser parcialmente devido ao fato de os pacientes morrerem antes de serem testados ou serem registrados como vítimas de outras causas, dizem os especialistas.
“O verdadeiro desafio em capturar as mortes por Covid é porque a causa da morte costuma ser atribuída a uma comorbidade, como doença renal ou cardíaca”, disse Mukherjee.
Essas discrepâncias entre os números oficiais e a realidade da Índia são gritantes para aqueles que estão na linha de frente.
“Em Délhi, pelo menos 3 mil pessoas foram veladas na semana passada”, disse Max Rodenbeck, Chefe da sucursal do The Economist no sul da Ásia, na segunda-feira (26). “Há um crematório em Déli que é um terreno enorme onde estão sendo construídas 100 novas piras funerárias. Isso acontece na maior cidade da Índia, que recebe mais atenção. O que acontece além de Déli é terrível.”
O vírus se espalha entre os estados
As subnotificações podem ser em parte o motivo pelo qual a Índia foi pega desprevenida pela segunda onda, disse Mukherjee, da Universidade de Michigan.
“Se tivéssemos dados mais precisos em termos de casos, infecções, bem como mortes estaríamos muito mais preparados e também anteciparíamos as necessidades de recursos de saúde”, disse ela. “(Dados problemáticos) não mudam a realidade, apenas deixa mais difícil a identificação das carências pelos gestores públicos.”
A segunda onda, que começou em meados de março, atingiu fortemente a capital Nova Déli, bem como o estado ocidental de Maharashtra. O território onde Nova Déli está localizada foi colocado em lockdown em 19 de abril e vai até 3 de maio.
Mas os casos estão aumentando em outros estados, levando algumas autoridades a impor novas restrições na tentativa de evitar a calamidade que atinge a capital.
O estado de Karnataka, no sul da Índia, impôs um toque de recolher às 21h para as próximas duas semanas desde terça-feira, com apenas serviços essenciais permitidos entre 6h e 10h, de acordo com o canal de TV indiano News 18, afiliado da CNN no país.
O estado de Punjab, ao norte, também anunciou medidas semelhantes na segunda-feira, incluindo toque de recolher à noite e lockdown no fim de semana. “Aconselho a todos ficarem em casa e sair apenas se for absolutamente necessário”, tuitou o ministro-chefe do estado na segunda-feira.
Enquanto isso, as autoridades estaduais e locais aguardam desesperadamente que chegue ajuda do governo central e do exterior. EUA, Reino Unido, França, Alemanha e Paquistão estão entre os países que ofereceram ajuda, com a disponibilização de equipamentos médicos incluindo respiradores e oxigênio.
Os primeiros carregamentos de ajuda do Reino Unido chegaram à Índia na terça-feira, segundo o secretário de Relações Exteriores britânico, Dominic Raab. “Ninguém está seguro até que estejamos todos seguros”, ele tuitou, com fotos da ajuda chegando ao país asiático.
(Texto traduzido. Leia o original em inglês).