Preso entre China e EUA, líder da OMS está no cargo que buscou a vida toda
Tedros Adhanom Ghebreyesus convive com a organização desde a infância na Eritréia, quando a entidade fazia combate ao surto da varíola
Tedros Adhanom Ghebreyesus estava assistindo televisão tarde da noite quando viu um chefe de hospital criticando ele e o Ministério da Saúde da Etiópia (do qual ele era o líder na época) por fazer um trabalho terrível. Em vez de responder com uma reprimenda furiosa, como alguns líderes políticos às vezes fazem ao se verem atacados na televisão, ele contatou o autor da crítica, o doutor Kesete Admasu.
“Tedros chamou o diretor do hospital e disse: ‘bem, se você tem ideias e é crítico, entre aqui e ajude-nos a consertá-lo’, e o nomeou vice-ministro. Isso dá uma noção do estilo de liderança dele em trazer os mais inteligentes e melhores e capacitá-los”, contou à CNN Mark Dybul, diplomata dos Estados Unidos, professor do Centro Médico da Universidade Georgetown e codiretor do Center for Global Health Practice and Impact (Centro de Prática e Impacto em Saúde Global).
“Ele assumiu um dos piores ministérios da saúde do mundo e transformou-o em um dos melhores. Teve que tomar decisões políticas e de saúde muito difíceis e se mexer para fazer isso acontecer”, lembrou Dybul.
Hoje, Tedros – que normalmente é chamado por seu primeiro nome, como é típico na Etiópia – está novamente enfrentando críticas duras ao tentar equilibrar interesses poderosos e reformar uma instituição problemática em meio a um desafio monumental. Alguns acreditam que se alguém pode mudar a Organização Mundial de Saúde e ajudar o mundo a lidar com a pandemia de coronavírus, essa pessoa é ele.
“Acho que ele está fazendo um trabalho incrível”, afirmou à CNN Peggy Clark, diretora executiva do Aspen Global Innovators Group, que trabalhou com Tedros. “Ele está gerindo a situação da melhor maneira possível, mesmo com o tipo de posição ridícula que os EUA estão adotando no momento”.
O presidente dos EUA, Donald Trump, vem atacando regularmente a OMS durante a pandemia, culpando-a por várias falhas e fazendo alusão a uma suposta influência da China na organização. Por fim, Trump retirou dezenas de milhões de dólares em financiamento e pediu a desfiliação do país ao órgão.
Tedros reagiu a esses ataques com serenidade, mas no início deste mês condenou a “falta de liderança” na luta contra a pandemia e fez um apelo emocional pela unidade global.
E quando o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, afirmou que o diretor-geral havia sido “comprado” pela China, Tedros rebateu com mais força, afirmando que os comentários eram “inverídicos e inaceitáveis”.
Segundo Tedros, o que “deveria importar para toda a comunidade internacional é salvar vidas”. Ele garantiu que a OMS não seria perturbada com esses ataques.
‘Estrela do rock no mundo da saúde’
Para observadores, é essa obstinação que caracterizou a ascensão de Tedros, um homem conhecido por sua paixão e foco, à fama global.
Em um discurso antes de ser eleito para um mandato de cinco anos na OMS em maio de 2017, Tedros citou a morte de seu irmão mais novo, aos 7 anos, vítima “de um dos muitos assassinos de crianças na África” (uma doença curável), como lembrou a revista Science.
Tedros disse que poderia ter sido facilmente ele a vítima, e foi “pura sorte” que ele estivesse naquele momento no palco, concorrendo a uma posição de liderança global.
Disse ainda estar comprometido em reduzir a desigualdade e garantir cobertura universal de saúde, porque cresceu “sabendo que a sobrevivência até a idade adulta não pode ser dada como certa, e recusando-se a aceitar que as pessoas deveriam morrer porque são pobres”.
Seu caminho logo ficou claro. Quando criança, vivendo na Eritreia – então uma região da Etiópia e hoje país independente –, a OMS logo entrou na sua consciência, relatou Tedros em um discurso no ano passado.
“Lembro-me de andar pelas ruas de Asmara com minha mãe e de ver cartazes sobre uma doença chamada varíola. Eu me recordo de ouvir sobre uma instituição chamada Organização Mundial da Saúde que estava livrando o mundo dessa doença aterrorizante, dando uma vacina de cada vez”.
Depois de conquistar um diploma em biologia na Universidade de Asmara em 1986, ele começou a trabalhar no Ministério da Saúde da Etiópia e estudou na Dinamarca, o que abriu seus os olhos para o valor da saúde universal. Em 1992, Tedros recebeu uma bolsa da OMS para um mestrado na London School of Hygiene and Tropical Medicine, que ele completou com um doutorado em saúde comunitária na Universidade de Nottingham em 2000.
Sua tese sobre malária na região de Tigray, onde cresceu, foi “extraordinária” e “inovadora”, como escreveu seu ex-supervisor em carta ao jornal médico The Lancet, apoiando sua candidatura a uma vaga na OMS. “Uma lembrança duradoura dessa colaboração foi a capacidade inata de Tedros de mobilizar e inspirar as comunidades a melhorar a saúde”, escreveu Peter Byass.
O africano se tornou chefe do Departamento Regional de Saúde de Tigray e passou um ano como ministro estadual antes de servir como ministro da Saúde de 2005 a 2012. “Havia de fato só uns cinco ou seis ministros da saúde, em todo o mundo, que estavam fazendo um trabalho excepcional nos países em desenvolvimento, e um deles era o ministro Tedros”, lembrou Clark.
Ele ficou famoso por “mostrar o caminho para uma nova era na saúde mundial”, nas palavras do ex-chefe da USAID, Ariel Pablos-Mendez, sobretudo por causa de sua visão ousada de contratar 38 mil jovens trabalhadoras comunitárias de saúde em todas as vilas do país para oferecer planejamento familiar básico, saúde infantil e tratamento da malária.
Seu trabalho ajudou a reduzir a mortalidade infantil em dois terços, as infecções por HIV em 90%, a malária em 75% e a tuberculose em 64%, segundo sua ficha de candidatura à OMS.
“Tedros se tornou uma espécie de estrela. Ele era uma estrela do rock no mundo da saúde, e todo mundo o amava, não apenas por ser tão carismático e brilhante, mas também porque, como ser humano, ele estava trabalhando para a família, crianças e mulheres, o que era muito incomum”, observou Clark.
A diretora do Aspen Global Innovators Group acredita que o programa de profissionais de saúde de Tedros fez uma profunda diferença para um país pobre. Ele seguiu as mesmas prioridades – saúde universal, mulheres e crianças e emergências de saúde – ao assumir o cargo na OMS.
A especialista lembra que muitos líderes nos países em desenvolvimento dependiam de atrair doadores, “mas Tedros era tão reverenciado e amado que podia literalmente entrar em uma sala com doadores e sair com um cheque multimilionário”.
Teshome Gebre, então representante na Etiópia para programas de saúde do Carter Center, uma organização criada pelo ex-presidente Jimmy Carter, foi visitar Tedros levando seus chefes dos EUA em 2006.
A ideia era pedir ajuda ao então ministro da saúde da Etiópia para combater doenças tropicais negligenciadas. Em uma reviravolta notável, Tedros os convenceu a doar US$ 35 milhões (R$ 182,7 milhões) para seu programa de malária, argumentando que esse era um trabalho mais urgente e salvador de vidas, destinado a pessoas marginalizadas e empobrecidas.
“Eles ficaram extremamente impressionados com a maneira como ele apresentou seus argumentos de forma muito convincente”, lembrou Teshome.
“Esta é uma das experiências mais memoráveis que já tive com o doutor Tedros. Acho que posso dizer que nunca tinha visto esse tipo de resultado completamente inesperado”.
O diplomata
A ascensão de Tedros à liderança da OMS é inovadora em várias frentes. Ele não é apenas seu primeiro diretor-geral africano, mas também o primeiro não médico a liderar a agência global de saúde. Ele tem um forte apoio do continente, no qual a África do Sul em particular vem enfrentando uma dura batalha para conter o coronavírus.
Em 8 de abril, Tedros disse que estava recebendo ameaças de morte, ofensas e comentários racistas, mas os ignorava. “Tenho orgulho de ser negro”, disse ele. “Eu não dou a mínima.”
O diretor-geral contou que, no entanto, quando toda a comunidade negra ou a África é insultada “então eu não tolero e aviso que as pessoas estão passando do limite”.
Sua passagem como ministro das Relações Exteriores da Etiópia entre 2012 e 2016 o viu refinar suas habilidades diplomáticas – como quando ele convenceu 193 países a se comprometerem a financiar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no âmbito da Agenda de Ação de Adis Abeba.
Tedros tornou-se amigo do ex-presidente dos EUA Bill Clinton, com quem fez contato na Clinton HIV/AIDS Initiative, recebeu apoio do magnata da tecnologia Bill Gates e mantém relacionamentos próximos com líderes políticos como o presidente francês Emmanuel Macron e o sul-africano Cyril Ramaphosa.
Celebridades, incluindo Lady Gaga, Jimmy Fallon e John Legend, também se juntaram aos esforços da OMS.
Mas alguns duvidam de Tedros justamente por causa de sua aptidão diplomática.
Quando ele estava concorrendo à liderança da OMS, houve preocupação por sua conexão com um governo autoritário – que o etíope Teshome admite que “não é muito democrático”.
Professor da Universidade Georgetown, Lawrence Gostin, um defensor de David Nabarro, o rival de Tedros na eleição da OMS, disse à CNN que estava preocupado na época com o “péssimo histórico de direitos humanos da Etiópia”.
Gostin, diretor do Instituto O’Neill de Direito Nacional e da Saúde Global, agora um Centro Colaborador da OMS, tinha reservas sobre supostos encobrimentos de surtos de cólera na Etiópia, o que Tedros nega.
Teshome concorda que Tedros “não foi suficientemente transparente”, mas observou que “se fizesse o contrário, seria demitido de seu cargo”.
O professor de Georgetown agora fala com Tedros regularmente e o chama de “extraordinariamente bom líder” e “um dos diretores-gerais mais fortes da memória recente”. Tedros herdou o que a Lancet chamou de uma OMS “machucada e se desculpando” após a sua má resposta à epidemia de ebola entre 2013 e 2016 na África Ocidental. A organização era burocrática, politizada e subfinanciada – por isso sua reforma era extremamente necessária.
O sucesso de Tedros em conter a epidemia de ebola na República Democrática do Congo (RDC) foi muitíssimo elogiado. “Ao contrário da maioria dos diretores-gerais, ele lidera na frente de batalha”, opinou Gostin. “Ele foi para a linha de frente e provavelmente esteve em perigo.”
A porta-voz da OMS, Margaret Harris, estava na RDC na época e lembra-se de Tedros participando dessas visitas, conversando com a população local e tirando selfies com quem pedisse. Quando uma emergência de saúde pública foi declarada, Tedros trabalhou na RDC.
“Dou-lhe muito crédito por se arriscar assim. Ele é um homem muito apaixonado pelo que faz, acho que isso fica claro. Dá para sentir a sua fúria também, e eu sinto, mas também pode-se perceber a sua compaixão.”
O professor se lembra de ter acidentalmente enviado a Tedros um texto destinado a sua esposa, dizendo que sentia falta dela. “Eu também te amo, Larry [Lawrence], é sempre bom ouvir notícias suas”, brincou Tedros em resposta.
A questão EUA-China
Muitos descrevem Tedros como humilde. Teshome diz que Tedros “não é um sujeito autoritário”, chamando-o de “bem-humorado, realista, muito respeitoso com as pessoas”.
Mas o governo Trump não está sozinho em suas preocupações sobre como Tedros lida com líderes autocráticos. Em outubro de 2017, Tedros escolheu o então presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, como embaixador da boa vontade da OMS – revertendo rapidamente a decisão após um clamor público.
Os críticos questionaram se a OMS é independente o suficiente, mencionando os elogios efusivos de Tedros à resposta chinesa à pandemia e colocando em circulação novamente as declarações da China de que “não havia evidências claras” da transmissão entre humanos do coronavírus em 14 de janeiro.
O professor Gostin não acredita que a OMS soubesse que a China estava sendo enganosa, mas diz que poderia ter respondido melhor.
“Eu teria dito que é isso que o governo chinês está nos informando sobre esse surto e não temos como verificá-lo de forma independente”, disse Gostin.
Tedros, acrescentou, acredita que “é melhor usar a diplomacia silenciosa nos bastidores do que criticar o governo publicamente”.
Tedros não foi tão elogioso à resposta eficaz da pandemia de Taiwan, um território que a China conseguiu bloquear como membro da OMS, como lembrou Gostin. “A política está em jogo. Não há dúvida sobre isso”. Mas ele reconhece que Tedros evitou antagonizar o governo chinês.
“Ele provavelmente sabe ler bem líderes fortes como o [presidente chinês] Xi Jinping. Se ele criticasse publicamente a China, isso poderia ter levado o país a ser menos cooperativo e menos transparente. E ele estava tentando convencê-los de dentro para fora. Mais do que persuadir, ele foi bastante firme com o governo chinês desde o início, a portas fechadas – mas isso prejudicou a reputação da OMS.”
A imagem da agência também sofreu quando não desaconselhou viagens à China. Tedros disse na época: “Tais restrições podem ter o efeito de aumentar o medo e o estigma, com poucos benefícios à saúde pública”.
A OMS que o mundo merece
A verdade é que o poder da OMS é limitado. Ao contrário de outras epidemias, o coronavírus devastou países ricos e pobres, e os líderes começaram a tomar medidas independentes cedo, como o fechamento de fronteiras, sem recorrer à OMS.
“O mundo tem a OMS que merece. E a razão pela qual digo isso é porque financia a OMS de forma lamentável, como se tivesse o tamanho de um grande hospital dos EUA. A OMS não tem controle sobre dois terços de seu orçamento e nenhuma organização pode ter sucesso dessa maneira. Quando algo dá errado, eles não recebem apoio político, são culpados”, opinou o professor de Georgetown.
As mensagens públicas da OMS às vezes parecem confusas. Preocupada com os países de baixa renda e com a falta de equipamento de proteção individual, a organização não recomendou o uso universal de máscaras desde o início. A OMS adiou a declaração da Covid-19 como emergência de saúde pública, embora não haja um padrão internacional para o que é uma pandemia. “Isso a machucou politicamente”, disse Gostin. “Mas não mudou a trajetória da pandemia.”
No entanto, apesar da devastação causada pelo vírus e de acusações sérias contra a OMS, Tedros se tornou um nome familiar e uma figura de destaque no cenário mundial.
Aos 55 anos, pai de cinco filhos, ele é atualmente um rosto familiar, aparecendo em entrevistas coletivas regularmente, distribuindo avisos e orientações vitais para o mundo. Suas declarações emocionais de que “não haverá retorno ao antigo normal” e que essa é a “pior emergência de saúde global de todos os tempos” provavelmente aparecerão nos livros de história.
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Dybul diz que Tedros reorientou rapidamente a OMS a partir de sua sede em Genebra, Suíça, colocando funcionários em países onde estão os problemas de saúde, assim como ele havia feito na Etiópia, tornando a OMS capaz de responder rapidamente ao ebola e ao coronavírus. “Ele aprende muito bem e muito rapidamente. Ele é incrivelmente inteligente e se adapta”, afiançou Dybul.
O diplomata disse que as alegações de que a OMS deveria falar sobre casos assintomáticos mais cedo, por exemplo, eram infundadas, pois naquele momento havia apenas evidências limitadas. “A OMS analisa rapidamente os dados; Tedros está mantendo um forte papel de liderança que é tecnicamente forte, o que não é fácil de ser feito no meio de uma crise global”, justificou Dybul.
“Ele conseguiu mobilizar a disponibilidade de kits de teste para que os países pudessem usá-los rapidamente. Ele montou a rede de vacinas, que é uma rede global de testes de vacinas, algo que somente a OMS pode fazer. A OMS está fornecendo diariamente suporte técnico importante aos países para que possam implementar as abordagens de rastreamento e quarentena de testes”.
Se os EUA tivessem aceitado os kits de teste da OMS, Dybul acredita que poderiam estar em uma posição muito diferente.
A disputa entre os EUA e a China é obviamente complexa, mas Tedros está tentando continuar o trabalho, pois o futuro do mundo está em jogo. O futuro da OMS também está em jogo. A forma como a agência se sairá ajudando a distribuir vacinas – uma missão que despertou o interesse de Tedros na infância – será crucial. É um desafio que exige grande parte de uma organização com pouco poder real.
As eleições nos EUA podem decidir se a OMS perderá seu maior doador ou se tornará mais forte graças ao financiamento e apoio político de um novo governo.
No centro do caos está um homem cuja vida está levando a esse momento: Tedros.
(Texto traduzido, clique aqui para ler o original em inglês).