Padre Júlio Lancellotti: não posso colocar ideologia acima da população de rua
Religioso de 72 anos é referência no acolhimento de pessoas em situação de rua em São Paulo
O padre Júlio Lancellotti, de 72 anos, foi vacinado contra a Covid-19 nesta sexta-feira (12) da maneira que ele queria: ao lado da população em situação de rua.
A CNN entrevistou o religioso em dois momentos em que foi destaque nos últimos dias.
No início da semana, após se espalhar imagens do padre quebrando, a marretadas, pedras colocadas pela prefeitura sob um viaduto de São Paulo. A segunda vez foi nesta sexta, depois que Lancellotti recebeu a dose do imunizante.
O padre conta que recebeu a última dose que sobrou em um frasco após todos que estavam no Centro de Convivência São Martinho, onde serve diariamente café da manhã a pessoas desabrigadas, já terem também tomado a vacina.
A cidade de São Paulo começou a vacinação de pessoas com mais de 60 anos que se encontram em situação de rua. De acordo com a prefeitura, esta é a realidade de mais de 2 mil indivíduos na capital.
Padre Júlio disse não ter sentido, até o momento, nenhum efeito colateral. Em entrevista à CNN, pouco após receber o imunizante, ele falou sobre a vacinação, a imagem na qual aparece quebrando as pedras sob o viaduto e sobre o trabalho diário que faz junto a grupos vulneráveis.
Como foi o momento da vacinação e como o senhor vê o início da imunização da população de rua em São Paulo?
Para mim, foi muito importante ter sido vacinado junto com eles. Eu não teria sido vacinado sem eles. Seria muito estranho ter sido imunizado sem que o povo de rua tivesse começado a receber a vacina.
Me marcou muito a coincidência de ter sido vacinado depois que todos tinham sido. Sobrou no vidrinho uma única dose que não poderia ser desprezada, aí fui imunizado com essa dose que sobrou.
Essa é uma resposta positiva neste momento em que a gente quer remover pedras: a pedra da omissão, a pedra da exclusão. Eu vejo o início da vacinação com muita esperança, me comoveu muito ver os moradores de rua chorando ao serem vacinados, porque eles nem esperavam isso.
As equipes dos consultórios de rua, formadas por muitas pessoas que estão nessa situação estão fazendo uma busca ativa, junto dos profissionais, do povo que pode ser vacinado. Hoje foi muito bom, porque eles [os agentes de saúde] foram até o Centro de Convivência, onde eles vão tomar café, e já vacinaram todos que estavam ali.
O senhor participou da coletiva do governo do estado de São Paulo para anunciar o início da vacinação da população em situação de rua. Há alguma preocupação com o uso político da sua imagem?
O objetivo de estar lá era de celebrar a vacinação da população de rua. Acho que, nesse sentido, mesmo com todas as contradições e dificuldades, não posso colocar a questão ideológica acima da população de rua.
É importante que o governo, numa ação como essa, tenha a sinalização clara de que estamos de acordo. Senão, fica uma oposição ferrenha, de que tudo que eles fazem está errado. Tem que ter discernimento. Estar lá e sinalizar, explicitamente, é um gesto importante.
Na semana passada, a foto do senhor quebrando as pedras sob o viaduto circulou pelo país. Como se sentiu ao ver aquela instalação?
Aquela instalação foi muito pessoal para mim, porque aquele viaduto é o viaduto Dom Luciano Mendes de Almeida. Dom Luciano foi quem me ordenou padre. A pessoa mais próxima dele que temos hoje e todos conhecem é o Papa Francisco, uma pessoa que a vida é voltada para os pobres.
Dom Luciano ia muito à periferia e o caminho dele era por aquela região. Quando fizeram o viaduto, eu pedi ao prefeito Gilberto Kassab que desse o nome do bispo. Foi difícil, porque muita gente queria pôr nome nesse viaduto e nós conseguimos.
Quando cheguei lá, foi aquela foto que publicaram. Fiquei muito desalentado. Eu estava muito cansado, fazia muito calor e eu estava há muitas horas sem tomar água. Eu fiquei completamente aturdido. As imagens foram causando muito impacto na Prefeitura e, naquele dia mesmo, ela mandou que retirasse.
Eu voltei lá no dia seguinte e, no primeiro viaduto, não o Dom Luciano, o que tem antes, tinha muitos operários tirando, martelando para arrancar as pedras que estavam chumbadas no concreto. Quando vi aquilo, pedi para eles me emprestarem a marreta e pensei, vou fazer um gesto simbólico e comecei também a martelar as pedras.
As imagens tiveram tanto impacto que a prefeitura, que tinha planejado tirar as pedras manualmente, mandou duas escavadeiras, cinco caminhões, três funcionários, para, aceleradamente, tirar essas pedras.
Mas essa não é a única instalação desse tipo em São Paulo.
Isso tem em muitos lugares na cidade, ali na frente do antigo Detran, nos baixos da estação Brás do metrô, no centro da cidade. Essa arquitetura hostil é presente na cidade inteira, aquele não é o único exemplo.
A Prefeitura disse que essa instalação foi uma “decisão isolada”. É isso que você vê?
Na Prefeitura, ninguém tem decisão isolada. Para mobilizar toda aquela quantidade de concreto, mais de 500 paralelepípedos. É um trabalho muito grande para ser uma decisão isolada.
Qual seriam medidas de fato efetivas para conseguir tirar as pessoas da rua?
Tirar as pessoas da rua não é tão simples porque ninguém chega na rua de repente. Chegar à rua é um processo.
Hoje, o que poderia ser feito é locação social, algo que já existe em São Paulo, a prefeitura conhece, é regulamentado, teve uma emenda na Câmara. Precisa ter lotação orçamentária e executar a locação social.
Outras modalidades que já existem em São Paulo e têm que ser ampliadas são as repúblicas, as residências terapêuticas, a bolsa-aluguel, a rede hoteleira para moradores de rua. Não estamos falando nenhuma novidade aqui.
Essas são medidas que geram autonomia, são mais baratas que a institucionalização e a repressão, e são medidas mais humanas.
O senhor acolhe a população de rua há décadas. Como é a sua rotina e os trabalhos que faz todos os dias?
Eu ministro a missa todos os dias às 7h e depois temos a manhã toda de convivência com a população de rua. Nós temos vários pontos de atuação da arquidiocese de São Paulo espalhados pela cidade. Uma equipe bastante grande e diversificada e uma prioridade: conviver com a população de rua.
Não é impor, é participar com eles. Não é dar uma resposta para eles, mas construir a resposta junto com eles. É um trabalho mais difícil, mais lento, mas é um trabalho mais humanizado.
Isso é importante principalmente no momento tão difícil que estamos vivendo, de pandemia, de cuidar da questão da saúde, da higiene. Então, diariamente, eu convivo com a população de rua, com, no mínimo, 500 pessoas por dia.
O senhor é bem ativo na internet. É o senhor quem administra as suas redes sociais ou tem alguém que o ajuda?
Sou eu mesmo que administro. Tem pessoas que me ajudam mandando fotos com qualidade, mas sou eu mesmo que coloco, que legendo, eu mesmo que mexo. Eu não tenho assessoria, nada disso. Sou eu mesmo que faço, um trabalho simples, pequeno.
Mas a divulgação do seu trabalho rendeu até uma ligação do papa no ano passado.
Eu já tinha escrito algumas vezes para ele e recebia a resposta mais formal. Outra vez, recebi uma resposta mais personalizada, não assinada por ele.
Finalmente, em outubro, ele mesmo me ligou e aí ele disse que sabia das dificuldades pelas quais a gente passa, que recebeu as fotografias que enviamos e ele mesmo se colocou em relação a isso, que conviver com a população de rua é mesmo o que deve ser feito, “conviva como Jesus fazia”.
Durante a campanha eleitoral, o senhor recebeu xingamentos e até ameaças de morte. Passado esse período, esse assédio cessou?
Não cessou, teve nas redes esses dias, mesmo agora, com o fato das pedras. Tem gente que xinga, que passa de carro e insulta. Mas isso sempre vai ter, porque vivemos em uma sociedade conflitiva, muito desigual, onde a presença dos moradores de rua é cada vez maior e quem não se alinha se incomoda cada vez mais.