Exclusivo: Ex-nadadoras denunciam abusos de presidente de federação no Amazonas
Vitor Hugo Lopes Façanha, conhecido como "Botinho”, nega abuso e assédio sexual denunciado por nadadoras quando eram crianças e adolescentes treinadas por ele
Após mostrar décadas de denúncias de abusos sexuais na natação dos Estados Unidos e como um treinador brasileiro foi banido por “má conduta sexual”, agora a CNN revela com exclusividade casos que teriam ocorrido no Brasil, entre os anos de 2008 e 2017, envolvendo um mesmo técnico da região norte do país.
Nessa segunda parte da investigação jornalística, ex-nadadoras do estado do Amazonas denunciam o atual presidente da Federação Amazonense de Desportos Aquáticos (Fada), Vitor Hugo Lopes Façanha, conhecido como “Botinho”, por abuso e assédio sexual quando eram crianças e adolescentes treinadas por ele. Uma das garotas trava uma sigilosa e solitária batalha judicial contra o ex-técnico. Ele nega todas as acusações.
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A reportagem entrou em contato com 21 jovens que treinaram com o técnico – 10 delas negaram qualquer tipo de desrespeito por parte do treinador. As demais compartilharam histórias e experiências que teriam marcado suas vidas.
Vitor Hugo possui dezenas de títulos regionais e nacionais, resultados das conquistas de seus atletas. Até o começo do ano, Botinho era treinador da modalidade esportiva no Centro Educacional La Salle, um tradicional colégio de Manaus.
Ele era o responsável também por recrutar e oferecer bolsas de estudo para atletas com potencial para serem campeões. E os nadadores com melhores tempos nas piscinas também treinavam, a cerca de 800 metros dali, na Vila Olímpica de Manaus, representando suas categorias pelo Amazonas em competições pelo país. Os abusos teriam acontecido, principalmente, nesses dois locais e em caronas dadas às jovens atletas.
Sob a condição de ter sua imagem preservada, o grupo de mulheres contou, em entrevista à CNN, que dos 12 anos de idade em diante tiveram suas partes íntimas do corpo tocadas, foram pressionadas na parede para serem beijadas, eram assediadas com pedidos de fotos íntimas e para terem relações sexuais na casa do treinador.
Na época, elas optaram por não contar nem mesmo aos pais o que acontecia. Apesar de serem da mesma faixa etária e até dividirem raias nas piscinas, nenhuma delas imaginou que não era a única que estaria sendo abusada.
Elas tinham outra coisa em comum: o medo do alcance do poder do treinador à frente de uma federação, que as impedia de levar as denúncias adiante. Por Botinho ser uma pessoa de confiança dos familiares dos atletas e instituições, as garotas ainda temiam que não acreditassem em suas palavras. Hoje, as ex-nadadoras dizem ter a certeza de que há dezenas de outras meninas na mesma situação: vítimas de Vitor Hugo.
Veja abaixo alguns trechos das entrevistas das ex-nadadoras:
Y., 20 anos
Foi atleta do Vitor Hugo na adolescência e, após ter sido recrutada por ele, viu os assédios contra ela crescerem a ponto de ela não conseguir mais nadar e ter depressão. Desde 2018, a ex-nadadora registrou um Boletim de Ocorrência e processa o ex-técnico na justiça do Amazonas por perturbação de tranquilidade. Como ela tinha 17 anos, o caso corre em segredo de justiça na 15ª Vara do Juizado Especial Criminal.
“Como eu gostava de fazer aquilo que eu fazia, na época, eu aceitei ir para lá com ele, na instituição onde ele dava aula. O La Salle. De repente, ele aparentou ser um ótimo profissional, mas logo se passaram algumas semanas ele começou com as perguntas que, tipo assim, cada aluna se sentia constrangida.”
“Até mesmo porque a gente esperava ir lá para receber um incentivo, um motivo de um professor e as perguntas eram: ‘Vamos ao cinema? Vamos andar de lancha? Quando você vai na minha casa?’. Eram esses tipos de perguntas. E, assim, quando eu estava de maiô, ele tentava várias vezes entrar na sala onde ficavam nossos materiais para ficar lá com a gente. Só que eu tentava sair fora. Não ficava com ele, junto com ele, porque eu tinha medo.”
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“Foi quando foi passando os limites a cada dia. Tipo assim, ele perguntando quando a gente podia namorar e eu sempre falava que não. E até então uma amiga minha pegou carona com ele e ali pra mim deu um basta, foi quando ela me falou que quando ela saiu do carro para ir para a casa dela, ele tocou na bunda dela. De lá, eu perdi a vontade de treinar, eu não fui mais pra nenhum clube, eu parei de fazer o que eu mais gostava por causa dele.”
“Então, foi quando eu resolvi falar para a minha mãe, que é a pessoa que eu mais confio na minha vida e foi quando a gente tomou uma iniciativa que era processá-lo, que isso não poderia ficar imune. E, na época, eu tinha uns 16 anos, eu era muito nova. Hoje em dia, eu tenho 20 anos e isso ainda está na justiça e é isso”.
R., 20 anos
Conta que começou a ser tocada nas partes íntimas por Botinho desde os 12 anos. Em uma carona, quando ela tinha 14 anos, ele chegou a empurrar a cabeça dela para ela fazer sexo oral nele. Os abusos teriam acontecido por mais algum tempo até ela largar a natação e nunca mais voltar a nadar.
“Dos meus 12 aos 14 anos aconteceram várias coisas. Nós éramos todos bem novinhos. Teve uma época que ele trocou de carro, aí dava carona para todo mundo e, às vezes, até para as mães. Só que quando iam só as alunas, ele ficava com graça e aí pegava na perna, pegava no braço. E aí ele deixava todo mundo e me deixava por último. Quando ele me deixava, eu ficava meio tensa… Com 14 anos. Porque ele pegava nas minhas partes íntimas.”
“Uma vez ele me trancou no carro junto com ele, não queria que eu saísse. Ele pegou a minha mão e botou nas partes íntimas dele. Outra vez também, ele me empurrou assim (mexe a cabeça para baixo), para mim… Fazer sexo oral nele. Várias vezes ele tentou fazer alguma coisa”.
“Eu lembrei agora de outra vez que, a gente tinha uma academia, perto da piscina lá na Vila Olímpica. O pessoal malhava primeiro, aquecia e depois ia nadar. Nesse dia, eu cheguei bem atrasada, mas eu acredito que isso não acontecia só comigo. Eu fui malhar por último, aí ele entrou lá junto comigo, e aí ele me prendeu assim contra a parede.”
“Aí começou a pegar nas minhas partes íntimas e disse que eu era gostosa. Eu tinha 14 anos quando isso aconteceu. Eu fiquei com medo na hora, porque eu pensei que ele ia fechar a porta e falei que não e… Aí eu peguei e caí fora. Deu tempo de eu sair. Aí tá, esse foi até os meus 14 anos. Depois disso eu passei muito tempo sem ir. Eu passei uns 6 meses ou mais sem ir para a natação, porque eu fiquei assustada. Isso nunca tinha acontecido comigo. Eu pensava assim “se ele fizer isso de novo”… Sei lá, eu era uma menina virgem.”
N., 23 anos
Durante exercícios na academia de ginástica e na frente dos colegas do time, a jovem conta que o técnico teria tentado beijá-la quando ela tinha 16 anos. E, no ano seguinte, ela já não estava mais na equipe dele e aceitou uma carona para casa. No caminho, ele teria insistido para irem na casa dele para terem relações sexuais. No meio do caminho, uma ligação da avó dela o fez desistir da ideia.
“Na academia, só tinham dois aparelhos e era muita gente, então, a gente sempre estava esperando a nossa vez no aparelho e eu estava lá esperando a minha vez e ele estava do meu lado falando comigo não lembro o assunto até que ele tentou me beijar. Sim foi para frente e na mesma hora me assustei, me fiz de desentendida e saí da academia e fiquei lá por fora esperando a hora de ir para piscina. Isso na vila olímpica, que era onde a gente treinava.”
“Quase chegando na casa dele, eu recebi uma ligação da minha avó perguntando ‘Você ainda vai demorar? Que horas você vai chegar?’. E aí, digamos que essa ligação me salvou porque quando eu desliguei, ele falou ‘é melhor eu te levar para casa porque senão ela vai estranhar essa demora, porque ela sabe que a gente vai transar’, ele falou.”
“Exatamente isso: ‘ela sabe que a gente vai transar’, então, eu vou te levar logo para casa, aí ele só pegou meu carregador e me deixou em casa. E na hora que ele me deixou na porta de casa, ele novamente tentou me beijar na boca. Ele se inclinou e eu simplesmente me fiz de desentendida, abri a porta, agradeci e fui embora. Acho que essa foi a última vez que eu encontrei com ele fazendo parte da equipe”.
F., 20 anos
Na infância, o Botinho a recrutou para nadar pelo colégio La Salle e deu uma bolsa integral para ela. Quando ela tinha apenas 11 anos, a garota conta que o técnico começou a tentar beijá-la na boca, a passar a mão no corpo dela com malícia e chamava para sair e ir na casa dele com a intenção de ter relações sexuais. Aos 14 anos, ela mudou de estado e ele teria continuado a assediá-la e a pedir fotos íntimas.
“Uns meses depois que eu entrei para a escolinha, uns três meses depois, que começou a passar a mão nas costas, na bunda, nas pernas. Aí depois foi só piorando. Não só em mim, como em outras atletas. Aos 11 anos, ele tentava me beijar, me chamava para sair. Quando me dei conta, durante quatro anos isso aconteceu e eu não fiz nada. Pesou muito para mim. Hoje em dia eu nem sinto raiva, eu sinto pena. Uma pessoa doente assim. Eu tinha 14 anos, ele mandava mensagens falando que ia vir para (cidade atual da vítima), me ver, para a gente passear, tentar algo mais, até fazer sexo.”
B., 19 anos
Começou a treinar com Botinho aos 12 anos. Ela diz que, desde essa época, ele chamava e apresentava as amigas e ela como “namoradas” e “esposas”. Quando tinha 12 anos, o técnico teria começado a chamar ela para sair com ele para namorar e iniciou abraços e toques pegando na bunda e seios dela. A garota também era bolsista da escola e não sabia o que fazer para sair daquela situação. Ela também teria tido a sua parte íntima tocada por Botinho quando era criança.
“Era algo muito rotineiro que ele fazia em todos os treinos.Começou nos treinos com ele abraçando mais demorado, quando ele ia tirar foto, ele chegava a tocar no seio, na bunda, ou então fazer comentários que me deixavam desconfortável sobre o meu corpo, sobre o meu corpo estar crescendo, meu corpo estar se desenvolvendo. Chegou até em uma situação específica, ele estava passando o treino. Ele estava com a mão em cima da mesa e com os dedos assim para fora e ele pediu para me aproximar. Estava na altura da minha vagina e aí ele pediu para se aproximar e os atletas que estavam atrás chegaram a empurrar e ele ficou tocando e me olhando como a cara meio nojenta. Ai só aconteceu de eu fechar as pernas e me afastar. Tinha 11, 12 anos.”
“Algumas eram bolsistas e não podiam falar nada, porque vai que perde a bolsa, vai que perde o incentivo. Ele era presidente da federação, então, vai que ele prejudica de alguma forma a minha de passagem, vai que ele conta uma versão que não é… para os meus pais, entendeu? Então tinham vários pontos e ele conhecia, ele conhece muita gente no esporte, então, é muito difícil chegar e ter coragem para falar, sabe? É uma pessoa que ressignificou vários aspectos da minha vida da pior forma possível. Porque a partir dele, a partir de experiências que eu tive com ele em vários âmbitos, eu comecei a me preocupar mais, eu me senti desconfortável a esconder coisas dos meus pais. Então acabou trazendo um desconforto muito grande para mim.”
I., 21 anos
Quando tinha 14 anos, a garota conta que fazia um exercício simulando o nado deitada de bruços no chão da academia, quando o Botinho entrou no local e disse que ela fazia o exercício de forma errada. Em seguida, ele teria sentado na bunda dela e depois deitado em cima dela para mostrar o movimento correto. Ela pediu para ele sair e ele a teria ignorado. Ele só teria se levantado quando um atleta entrou na sala e o flagrou.
“Antes de realmente acontecer, de fato, ele sempre brincava que eu tinha um corpão, que eu tinha um coxão. Se eu comentava que eu estava com fome, ele dizia que podia me emprestar um dinheiro e depois eu poderia pagar com outra coisa. Ele perguntava se eu não queria carona para casa, se eu não queria ir ajudar ele a pegar alguma coisa no carro. Eram brincadeiras inapropriadas ele ficava toda hora querendo abraçar e tentar beijar. Não era legal”.
“Eu cheguei atrasada e aí ele mandou eu ir malhar. E eu fui, eu estava sozinha e comecei a fazer os exercícios e tinha um exercício que eu ficava com os braços, a mão presa e tinha que fazer um movimento lá e a perna estava presa. E aí na hora eu fazendo exercício, ele entrou. Só estava eu e ele e ele entrou e disse que eu tava fazendo exercício errado e aí eu rebati e disse que não estava. E aí ele foi e montou em mim, deitou, se debruçou em mim e me explicou como que era para fazer. Era exatamente o mesmo exercício. E aí ficou com o rosto assim no meu pescoço.”
“E assim foi super desconfortável, e eu na hora fiquei sem saber o que fazer. E vinham muitas coisas e ao mesmo tempo o corpo não reagia. Eu pedi para ele sair de cima e disse que eu já tinha entendido o exercício e ele falou que não que ele queria que eu fizesse o exercício para ele ter certeza, e aí eu fiz o exercício, falando que ele já podia sair e ele continuou ali. Durou uns cinco minutos, para mim foi quase uma hora e foi horrível. E graças a Deus um atleta entrou na hora e ele saiu rápido de cima. Aí , eu peguei as minhas coisas e saí. Eu inventei uma desculpa para os meus pais e nunca mais voltei.”
M., 21 anos
Aos 11 anos, era chamada e apresentada por Botinho como “esposa” dele. Ouvia assédios e estranhava a forma como ele tocava nas atletas do sexo feminino.
“Ele pegava na gente de maneiras estranhas. Tipo querer alongar a gente de um jeito que a gente tinha visto que ele nunca alongava a gente, querer beijar a gente no rosto, dar abraço, dar carinho. Assim, um comportamento que não condiz com a situação dele, a pessoa que ele tinha que ser para gente. Então para mim ele não é ninguém hoje. Ele é uma pessoa que destruiu o futuro de muitas pessoas e não devia estar mais aí onde ele está hoje.”
“Todo mundo tem família, todo mundo tem endereço. A gente não sabe aonde isso pode chegar, mas eu optei por não me calar para representar todas elas que tem medo, para poder estar aqui por elas, para elas e por mim. E para todas as outras que podem vir passar por isso”.
P. 24 anos
Aos 13 anos, durante uma competição de natação entre vários clubes, a garota disse que Botinho a chamou e disse que uma amiga dela confidenciou que a garota queria namorar com ele. Ela prontamente negou e questionou a amiga em seguida, que disse não ter falado nada disso. A menina ficou alerta, porque há alguns anos antes, havia sido abusada por outro treinador e não deixou Botinho se aproximar além da relação treinador e aluna.
“Ele me chamou próximo dele e ele falou que uma amiga minha tinha dito para ele que eu queria ficar com ele, que eu era apaixonada por ele. Eu tinha 13 anos de idade. Eu me assustei com aquilo e muito nervosa já, eu lembro que eu falei até com a voz trêmula, eu disse para ele só que ‘não’. A única coisa que você falar foi ‘Não’, porque eu já tinha passado por algo parecido. E viu que eu iria me afastar, então foi quando ele pegou na minha mão e puxou mais para perto e disse ‘Não vem cá, É sério’. E eu puxei a minha mão e disse ‘Não! É mentira dela, eu não quero nada contigo’. E consegui continuar andando. Acho que nunca foi um caminho tão longo daquela piscina até o banheiro e eu olhando para trás para ver se ele não vinha atrás de mim”.
“Foram acontecimentos que refletem até hoje nos meus relacionamentos. Não, não consigo ter 100% confiança em um homem, um abraço, eu tenho medo, então Graças a Deus eu já consigo me relacionar, mas isso interferiu por muito tempo. Eu não queria ter proximidade com homem. Eu queria ser o menos possível atraente para um homem. E são coisas que eu vou levar para o resto da minha vida que eu sei disso, mas hoje eu estou lutando bastante para que isso não interfira tanto, porque eu preciso fazer isso por mim. Eles não podem vencer, essa é a única maneira de vencer, que é cuidando de mim.”