Lula transita entre “petismo raiz” e “frente ampla” em 100 dias de governo, dizem especialistas
Cientistas políticos apontam que a tentativa de agregar os diferentes setores tem acarretado mais consequências negativas do que positivas ao governo federal
Em 100 dias de governo, que serão completados nesta segunda-feira (11), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) variou sua gestão entre o chamado “petismo raiz”, diretriz de sua figura e carreira políticas, e a “frente ampla”, que ajudou a elegê-lo para seu terceiro mandato ao longo da campanha.
Com isso, enfrentou resistências dentro de sua base de apoio e até mesmo de sua própria sigla. É o que dizem cientistas políticos ouvidos pela CNN.
No primeiro mês de governo, em aceno ao setor petista, Lula chamou o ex-presidente Michel Temer de “golpista” por conta do impeachment de Dilma Rousseff (PT), ocorrido em 2016. A declaração causou desconforto ao MDB — um dos maiores partidos da base do governo.
Em fevereiro, ao definir o retorno da cobrança de impostos federais sobre os combustíveis, Lula enfrentou resistência da presidente do PT, Gleisi Hoffmann. Apesar da importância da medida para a arrecadação do governo, a petista temia seus impactos políticos.
Especialistas consultados pela CNN apontam que a tentativa de agregar estes diferentes — e por vezes antagônicos — setores tem acarretado mais consequências negativas do que positivas ao governo federal.
“Tem trazido mais aspectos negativos. O governo tenta equilibrar a frente ampla, que o elegeu, e tem uma parte da esquerda, que é aquela dos anos 90, que não aceita essa nova conjectura da política. Quando há o atrito entre a coalizão e essa ala do PT, vemos que, para o Lula, há mais ônus no meio disso”, afirma a cientista política Deysi Cioccari.
Os cientistas políticos consultados indicam também que, entre os setores, o núcleo petista foi priorizado até o momento. Para o professor Carlos Pereira, da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape), Lula “acomoda, desproporcionalmente, aliados que ofereçam apoio político”.
Lula prioriza PT, mas tenta montar base no Congresso
Em sua terceira eleição para a Presidência, Lula teve ao seu lado no palanque, como candidato a vice, figura com a qual rivalizou durante parte de sua carreira política, Geraldo Alckmin (PSB). Entre outros ex-adversários, o petista contou com nove partidos em sua base de apoio.
A “frente ampla” de Lula se consolidou três dias após o primeiro turno das eleições, quando Simone Tebet (MDB) embarcou em sua campanha. O petista também contou com a adesão de nomes como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e os economistas Henrique Meirelles, Armínio Fraga, Pedro Malan e Persio Arida.
Dois meses mais tarde, o primeiro anúncio ministerial levou ao governo dois petistas (Fernando Haddad e Rui Costa), um político do núcleo mais próximo de Lula (Flávio Dino) e dois ex-ministros de gestões do PT (José Múcio e Mauro Vieira).
As nomeações de Marina Silva (Rede) e Tebet — representantes da frente ampla durante a campanha — dependeram de negociação complexa e ficaram para a última lista.
Os 37 ministérios foram distribuídos entre o PT e outros oito partidos, todos com cadeiras no Legislativo. Com isso, Lula apresentou maior diversidade do que em mandatos anteriores – em 2003, seis siglas dividiam 30 pastas; quatro anos mais tarde, eram sete.
No Lula 3, o PT comanda nove ministérios; MDB, PSB e PSD estão à frente de três; União Brasil e PDT, de dois; e PCdoB, PSOL e Rede, de um. Outras 11 pastas têm ministro sem filiação partidária.
Na avaliação de Pereira, a coalizão reúne um conjunto “muito heterogêneo” de legendas, mas a divisão de recursos e orçamento “não é proporcional ao tamanho dos aliados no Congresso”.
“O presidente gerencia mal a coalizão, porque não leva em consideração o peso político dos partidos parceiros, e privilegia o peso do seu. Cedo ou tarde, isso fará com que eles busquem reequilibrar as forças, já que elas começam desequilibradas em favor do PT”, aponta.
Quatro dessas agremiações (MDB, PSD, União Brasil e PDT) não apoiaram Lula no pleito e, inclusive, abrigam opositores do petista, como o senador Sergio Moro (União Brasil) e o governador do Paraná, Ratinho Júnior (PSD).
Deysi Cioccari diz que Lula cede espaço no governo à frente ampla também como “agradecimento” ao apoio na eleição, mas principalmente com o objetivo de construir sua base no Congresso Nacional.
“Ele tenta montar uma base no Congresso, o que está muito difícil. Existe o pagamento das eleições, mas principalmente há a tentativa de fazer base no Congresso. Se o PT tivesse feito maioria, talvez essa fidelidade à frente ampla não estivesse a ponto de peitar alas do PT”, opina.
Nas eleições para as mesas diretoras do legislativo, em fevereiro, o PT abriu mão de ter aliados diretos na disputa e abraçou as reeleições de Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, e Rodrigo Pacheco (PSD-MG), no Senado.
Para Cioccari, Lula buscou minimizar riscos com o apoio às candidaturas. Ela diz que o petista conhece os riscos de ver no comando da Câmara um parlamentar de oposição e, por isso, escolheu opções mais seguras.
Petistas históricos retornam
Os primeiros meses de Lula também ficam marcados pela indicação de petistas históricos para cargos estratégicos. Entre elas estão as nomeações de Aloizio Mercadante para a Presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e de Dilma Rousseff para o Banco dos Brics.
Outros exemplos são o ex-deputado estadual André Ceciliano (RJ) e o ex-congressista Enio Verri (PR), que receberam postos na Secretaria de Relações Institucionais e na diretoria da Itaipu, respectivamente.
Lula fez ainda acenos públicos a José Dirceu (PT), ao lhe chamar de “militante histórico”, e defender seu retorno ao debate público. O ex-ministro foi condenado por associação criminosa, corrupção ativa e lavagem de dinheiro. Seu filho, Zeca Dirceu (PR), lidera o partido na Câmara.
O professor da FGV comenta os objetivos de Lula ao acenar à “base mais identitária”: “Ele busca construir uma narrativa de unificação dessa base, para mostrar que há uma fatia relevante do eleitorado que está com ele, não importa o que aconteça”, conclui.
Lula tenta se equilibrar na economia e nas relações internacionais
Um dos principais embates travados por Lula e pela base petista neste início do mandato tem como algoz o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto. A instituição manteve a taxa básica de juros em 13,75% ao ano desde o início da gestão — o que gerou críticas do governo a sua atuação e até autonomia.
Carlos Pereira enxerga contradições na posição do petista ao lidar com o tema. “Ele critica a presidência do Banco Central, mas manda seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defender o equilíbrio macroeconômico e o controle das contas públicas. Seu discurso é duplo”.
Em outro episódio que colocou alas da frente ampla e o petismo em oposição, o Ministério da Fazenda retomou a cobrança de impostos federais sobre combustíveis, medida criticada por dirigentes petistas, incluindo a presidente da sigla.
A decisão agradou parte dos agentes do mercado. Em entrevista à CNN no final de fevereiro, Felipe Sichel, economista-chefe do Banco Mundial, afirmou que a reoneração traria um impacto positivo para a política fiscal brasileira.
Em outra direção, Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE) e comentarista de energia da CNN, avalia que a decisão foi “uma vitória da ala política”, que inclui Gleisi e Mercadante, e não da agenda fiscal.
O especialista explica que as cobranças de PIS e Cofins foram retomadas em patamares inferiores aos cobrados antes da desoneração, implementada em junho de 2022: R$ 0,47 por litro da gasolina e R$ 0,02 no etanol, ante R$ 0,69 e R$ 0,24 do anterior.
Com o objetivo de completar a arrecadação pública, o governo criou o imposto de exportação do petróleo. Pires aponta que a medida cria insegurança jurídica, mas evita perda de popularidade do governo.
No âmbito da política externa, o presidente tem demonstrado “pragmatismo”, para a professora Neusa Bojikan, da Universidade de Campinas (Unicamp).
Na visita ao Uruguai, onde se encontrou com o presidente Luis Lacalle Pou, membro de um partido de centro-direita, o brasileiro declarou que “as relações entre chefes de Estado não têm viés ideológico”. O presidente esteve também na Argentina e nos Estados Unidos.
No planejamento da viagem à China — adiada após o mandatário ser diagnosticado com pneumonia — foram convidados empresários que financiaram a campanha de Bolsonaro. Aliados disseram que a escolha mostra a disposição do governo federal em “unir o Brasil”.
Em outro momento, Lula enviou seu assessor especial, Celso Amorim, à Venezuela, para retomar relações com o país vizinho.
Do ponto de vista diplomático, o governo federal permaneceu em silêncio durante uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU e não assinou um manifesto de 55 países em repúdio às ações autoritárias e violentas do presidente Daniel Ortega, da Nicarágua.