Bullying: especialistas explicam como é possível lidar com a prática da intimidação
Abordagem multidisciplinar com a participação de familiares, profissionais da educação e dos serviços de saúde pode contribuir para minimizar os impactos da intimidação
O termo “bullying” tem origem no inglês a partir da palavra “bully”, que significa valentão ou agressor. A expressão passou a ser utilizada para descrever principalmente comportamentos abusivos e intimidadores entre crianças e adolescentes em ambiente escolar.
A origem do problema é multifacetada, envolvendo fatores sociais, culturais e psicológicos, além de questões familiares e da formação individual como falta de habilidades sociais, baixa autoestima, comportamentos agressivos aprendidos e a busca por poder e status social.
“A origem do bullying está na dificuldade humana de lidar com o diferente. Fala-se muito disso, mas a tolerância é uma das coisas mais difíceis para o ser humano praticar. Isso requer muita maturidade em todos os sentidos. Tem muitos adultos que a gente observa que têm muita dificuldade em lidar com a diferença, imaginem as crianças e adolescentes para os quais o mundo é um ‘senhor desconhecido'”, afirma a psicanalista Eliana Riberti Nazareth, docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
Por vezes, ataques violentos ocorridos em escolas no Brasil e no exterior são descritos como a consequência extrema em uma reação de vítimas de bullying que se tornam agressores. No entanto, especialistas em saúde mental afirmam que a associação entre bullying e episódios violentos é ainda mais complexa.
Nesse contexto, a abordagem multidisciplinar com a participação de familiares, profissionais da educação e dos serviços de saúde pode contribuir para minimizar os impactos da intimidação.
“É importante abordar o assunto com delicadeza e empatia, ouvir atentamente dando a oportunidade de falar sobre suas experiências e sentimentos em relação ao bullying, e isso os ajudará a se sentir mais seguros e confiantes. Validar seus sentimentos, mostrando que você entende o que eles estão passando. Oferecer apoio emocional. Discutir opções e estratégias tais como reportar o incidente à escola, buscar ajuda de um profissional de saúde mental, ou encontrar formas de se sentir mais seguros e reforçar a importância de falar sobre o problema com alguém de confiança”, afirma o psicólogo Ricardo Milito.
A médica Ana Márcia Guimarães, membro do Departamento Científico de Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), afirma que o bullying pode ser apenas uma das causas de atentados violentos, que também têm origem em transtornos mentais sem tratamento.
“O agressor, que pode culminar em uma tragédia assim, tem um perfil que normalmente é de uma pessoa que foi vítima de bullying anteriormente. Então, é um adolescente agressivo, que não respeita regras, que não tem medo de autoridades. Um adolescente impulsivo pode culminar num comportamento assim de extrema impulsividade”, afirma Ana. “Às vezes, é um ato deliberado, planejado, calculado, por um transtorno de conduta, caminhando para um transtorno de personalidade”, completa.
Como reconhecer que uma criança ou adolescente é vítima de bullying?
Reconhecer que uma criança ou adolescente tem sido alvo de bullying pode ser um desafio. Muitas vezes, as vítimas não se sentem à vontade para contar o que está acontecendo, têm vergonha ou receio das consequências de revelar o problema. No entanto, existem alguns sinais que podem indicar que uma criança ou adolescente está sofrendo intimidação.
“Mudanças de comportamento e humor, podendo parecer mais triste, ansioso, retraído ou mais agressivo do que o normal. Evitar ir à escola ou participar de atividades que antes gostavam. Problemas físicos como lesões inexplicáveis, hematomas, arranhões, dores de cabeça ou de estômago com mais frequência do que o normal. Perda ou dano de pertences. Mudanças no desempenho escolar. Isolamento social ou dificuldade em fazer novas amizades são alguns sinais”, afirma Milito.
O psicólogo e professor de psicanálise Ronaldo Coelho destaca que crianças mais reservadas e introspectivas tendem a ser vítimas de intimidação nas escolas.
“Uma criança que sofre bullying tende a ser mais introvertida, na escola ela pode preferir ficar sozinha na hora do recreio, pode preferir ficar na sala de aula, ficar conversando com os professores em vez de brincar, buscar formas de ficar longe do ambiente onde as outras crianças possam ter acesso a ela e perturbá-la, violentá-la. Algumas só vão pedir para ir ao banheiro quando a aula começar, pois assim garantem que as crianças abusadoras não vão violentá-la no banheiro por estarem na sala de aula, por exemplo”, afirma.
O bullying pode ser classificado em diferentes tipos, como ações de violência física, verbal e psicológica. O entendimento sobre a forma como a intimidação é praticada pode ajudar a lidar de maneira mais eficiente com o problema, como explica o médico psiquiatra Gabriel Okuda, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz.
“O bullying pode ser dividido em vários tipos, desde a parte física, com relação à violência física à violência psicológica, incluindo intimidações, chantagens, calúnias ou perseguições de qualquer aspecto, seja religioso, pela questão sexual ou pela aparência física. Também é dividido pela questão verbal, caracterizado muitas vezes por xingamentos, humilhações e até apelidos que são de mau gosto”, explica.
Com o amplo uso da internet e das redes sociais, o bullying virtual, também chamado de cyberbullying, passou a representar um impacto significativo na prática. “A internet hoje em dia é uma extensão da nossa vida. Isso acaba fazendo com que algum tipo de bullying nesse ambiente acabe tendo uma abrangência e alcance de pessoas muito grande”, diz Okuda.
Já os casos de bullying social estão relacionados à exclusão de um indivíduo do convívio social por um grupo de pessoas. “É importante termos essas delimitações e esses tipos definidos por que é a partir dessas delimitações conseguimos explicar um pouco melhor para a criança ou o adolescente que é vítima desse tipo de ação”, pontua.
Como pais e cuidadores podem lidar com o problema?
Criar um ambiente seguro e de apoio ao compartilhamento de preocupações pode ser um caminho para que a criança ou adolescente fale sobre o que está acontecendo.
“Conversar com a criança ou adolescente, buscando entender o que está acontecendo e como ela se sente é um caminho. Elas podem estar com medo ou envergonhadas de falar sobre o bullying. É importante ensinar habilidades sociais como se comunicar efetivamente, resolver conflitos de forma construtiva e desenvolver empatia e compaixão pelos outros. Além de encorajar a autoconfiança através de elogios e de incentivo”, afirma o psicólogo.
A orientação é compartilhada pela médica psiquiatra Jéssica Martani. “Estimule a comunicação, ajude seu filho a lidar com conflitos e ensine habilidades sociais e empatia. Ajude a estimular a autoconfiança e autoestima para que ele veja quais os talentos possui e que podem ajudá-lo”, diz.
Nesse contexto, o trabalho em parceria com a escola pode contribuir para resolver o problema, incluindo o fortalecimento da política de prevenção e intervenção ao bullying. Os especialistas sugerem medidas como o estabelecimento de um canal de denúncias, a realização de ações educativas e a aplicação de sanções disciplinares, além da capacitação dos professores e demais funcionários da escola.
“É fundamental implementar medidas de prevenção e intervenção, promover a conscientização dos estudantes abordando temas como empatia, tolerância e o respeito pelas diferenças, estabelecer um ambiente escolar seguro como a instalação de câmeras de segurança, regras claras de convivência, envolver os pais e a comunidade realizando reuniões, palestras e outras atividades de conscientização e engajamento”, diz Milito.
Ronaldo Coelho afirma que caso a escola tenha um espaço instituído para se falar sobre as relações, esse tema pode ser abordado pelos mais diferentes caminhos até culminar em uma discussão da substituição da postura ética no lugar da força física.
“Um caminho que se possa compreender o uso da força e da violência como a falência da capacidade mental em lidar com problemas e conflitos. Porém, uma discussão complexa a esse nível precisaria ser muito bem pensada e estruturada pela escola, pensando na singularidade de cada turma e no momento do desenvolvimento em que cada um está, para que pudesse ser verdadeiramente efetiva”, diz.
A psicanalista e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) Eliana Riberti Nazareth fala sobre a importância da integração entre família e escola diante de problemas.
“É importante os pais, quando estão passando por problemas dentro de casa, entre familiares, de conflitos entre entre si ou com outros parentes, que informem a escola, para que a escola fique mais atenta a aquele filho que pode estar sofrendo. E dentro de casa, às vezes, ele não manifesta sofrimento, ele vai manifestar no ambiente escolar”, afirma.
Vivência de um trauma
Vivenciar a experiência de um ataque violento em escola pode provocar trauma com consequências a longo prazo para a saúde mental de crianças e de adolescentes. A exposição a uma violência como essa é considerada um trauma de choque e que pode ter muitos desfechos, desde uma reação aguda ao estresse que dura poucos dias após o ocorrido até o transtorno do estresse pós-traumático que pode um longo prazo.
“Nas primeiras semanas após uma experiência como essa são esperados comportamentos que dizem de uma reação aguda ao estresse, tais como alteração do sono, pesadelos, sensação de alerta constante, aumento da ansiedade basal, dificuldade para relaxar, aumento da irritabilidade, tentativa de evitar contato com o local e com qualquer coisa que lembre a situação, então algumas crianças ou até mesmo os adultos envolvidos podem não querer retornar à escola ou podem também sentir o contrário de tudo isso, como se estivessem anestesiados”, explica a psicóloga especialista em traumas, Ediane Ribeiro.
Nessa fase, o cérebro e o corpo tentam lidar com a forte carga emocional recebida. Porém, se esses sinais e sintomas duram mais que algumas semanas, podem sinalizar para o desenvolvimento do transtorno do estresse pós-traumático, que precisa de uma atenção e cuidados especializados, segundo a psicóloga.
“Esse tipo de trauma tem dimensões individuais e coletivas e todas elas precisam ser consideradas. O suporte a todas as pessoas envolvidas diretamente – desde familiares da professora, a criança que era alvo da agressão, todas as crianças da escola e seus funcionários – se possível com uma intervenção precoce de profissional da área de saúde mental e emocional é a primeira medida”, avalia.
A especialista pondera que diante de um ataque não há como a escola voltar a funcionar normalmente, como se nada tivesse acontecido.
“Será preciso tratar do tema coletivamente, criar espaços para que alunos, professores e funcionários possam compartilhar suas sensações e tenham oportunidade não para falar do trauma em si, que pode nem ser tão indicado nesse momento, mas para juntos encontrarem rede de apoio e medidas de reestabelecimento do senso de segurança. Então, rodas de conversa, grupos de acolhimento são importantes dentro da escola nesse momento”, orienta.