“Viver para ser livre”: para Mano Brown, Glória contou sua trajetória e como descobriu câncer
Jornalista morreu nesta quinta-feira (2) no Rio de Janeiro
“A gente acha que algumas pessoas são imortais, “imorríveis”. E, na verdade, elas são (…) são pessoas que não saem do nosso imaginário, da nossa referência”.
Foi assim que Glória Maria, que morreu nesta quinta-feira (2), se referiu a personalidades como Freddie Mercury e Michael Jackson, sem imaginar que o mesmo poderia ser aplicado a ela um dia.
A declaração foi dada ao cantor Mano Brown, em uma longa entrevista de mais de duas horas no podcast “Mano a Mano”. Na época, dezembro de 2021, Glória Maria tinha terminado um processo de dois anos de recuperação de um tumor cerebral que a tirou da TV.
“Hoje eu sou uma fênix, a verdade é essa”. De lá para cá, Glória viveu por pouco mais de um ano com sua energia indiscutível, fazendo todos se questionarem sobre qual o segredo da sua saúde, que a abasteceu com “gás” suficiente para viver a vida “como tem que ser vivida”.
Do subúrbio do Rio aos quatro cantos do mundo: a jornalista pisou em mais de 160 países, sempre enfrentando o medos.“Eu nunca tive atitude de vitimismo, eu tive de enfrentamento”, disse.
Foi assim que avançou na sua jornada, buscando sempre o próximo passo: “Quero saber até onde eu posso me desafiar e me conhecer. Porque o medo, caramba, o medo muda tudo. O medo faz você conhecer o outro lado da sua alma”.
Minha avó dizia: a nossa história sempre foi de correntes, então você não pode permitir, nunca, que te acorrentem. Você tem que viver para ser livre, sempre, a qualquer preço, a qualquer custo
Infância e juventude
Nascida no subúrbio do Rio, Maria – como sempre quis ser chamada, mas o nome nunca vingou – aprendeu a história da escravidão longe dos livros.
Foi sua família que a ensinou, por experiência própria. Esses ensinamentos permaneceram com ela por toda a vida e a moldaram. “Minha avó dizia: a nossa história sempre foi de correntes, então você não pode permitir, nunca, que te acorrentem. Você tem que viver para ser livre, sempre, a qualquer preço, a qualquer custo”.
E foi assim que, corajosa, construiu suas verdades e, alheia aos comentários depreciativos, trilhou seu caminho pioneiro. Desbravou tudo sozinha, sempre fazendo o que tinha vontade.
Carreira no jornalismo
Glória contou a Mano Brown que, se não tivesse sido jornalista, seria cantora. Mas os caminhos da vida tornaram o jornalismo uma opção indiscutível.
Para ela, era uma arte: “A arte de pensar, de falar, de se autoanalisar, a arte de olhar para o outro”.
Começou na rádio escuta da TV Globo no Rio de Janeiro, sem receber qualquer salário. Por lá, ficava das 7h às 20h e ainda emendava com outro trabalho.
Depois, virou repórter – a primeira negra a aparecer ao vivo e a cores no Jornal Nacional – sem saber que estava fazendo história. Conheceu o Brasil “como ninguém” e se aventurou pelo mundo.
De guerras na América do Sul, passando pelo Himalaia até o interior da Sérvia, onde aconteceu um dos episódios mais marcantes da sua jornada.
“Conheci uma senhora de quase 100 anos que nunca tinha visto um preto. Ela passava a mão no meu rosto e no meu cabelo e dizia: “Não vá embora, você não sabe a felicidade que me deu de poder morrer sabendo que você existe”, contou Glória.
Mas nem tudo foram flores.
Nos anos da ditadura militar, em que chegava na redação e descobria o que podia ou não ser falado naquele dia, teve, mais uma vez, que enfrentar as adversidades que eram agravadas pela cor da pele.
“Aquela neguinha não pode chegar perto de mim” – era o que falava João Batista Figueiredo, o último presidente da ditadura, quando a via. “Me espanta as pessoas pensarem na volta da ditadura. É como se a gente voltasse para o inferno. Meu Deus do céu, ditadura nunca mais”, desabafou Glória a Mano Brown.
Exemplo e referência
Michael Jackson, Freddie Mercury, Madonna, Leonardo Dicaprio, Nicole Kidman.
A lista de famosos que Glória entrevistou é imensa. Mas quem mais a marcou foi Michael Jackson. Usando a irreverência e a humildade a seu favor, como ela própria explicou, conseguiu quebrar o gelo e conversar com o rei do Pop por mais de 15 minutos.
“Sentada ali no chão com ele, descobri que não ficou branco porque quis, como as pessoas assumem. Ele tinha vitiligo em 80% do corpo, e tinha sofrido uma queimadura muito grave em uma gravação. Era inevitável ficar branco”.
Foi assim também que chamou a atenção de Madonna e de Freddie Mercury e inspirou várias gerações de jornalistas com seu jeito único de exercer a profissão.
Com o passar dos anos, ela criticou a busca exagerada por “coisas erradas” como alimentar o ego e falou de uma cultura de superficialidade.
“A gente está com uma geração muito sem afeto em vários sentidos (…) falta vontade de fazer alguma coisa de verdade. É a cultura do supérfluo, a cultura da bobagem. Assim, sua alma não cresce, você vai ficar no raso o tempo todo”, analisou Glória no podcast.
Uma dose de “sobrevida”
Em novembro de 2019, Glória caiu e descobriu que tinha um tumor que a mataria em 15 dias se não fosse operado: “Eu pensei: vamos lá, é a minha vida, minha história e eu não gosto de drama, a vida é intransferível”.
De lá até o dia de sua morte, viveu um turbilhão de emoções com o falecimento de sua mãe e o afastamento das telinhas, na época que, segundo ela, foi a mais desafiadora de sua vida.
Ainda chegou a apresentar o Globo Repórter, em maio de 2021, quando todo mundo duvidou dessa possibilidade.
Para Mano Brown, disse que não gostava de se queixar e que tinha que viver para experimentar “outro pedaço” da sua existência. E foi isso que fez, depois de uma vida de “tempestade, furacão e turbilhão”.
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