Cem anos de escuridão
A Lei de Acesso à Informação brasileira, publicada no já longínquo ano de 2011, representa importantíssima conquista da nossa sociedade, pedra fundamental do caminho em direção à consolidação democrática.
O diploma foi então considerado – e ainda é – um dos mais avançados do mundo, assumindo o papel de relevância e referência (não obstante alguns de seus dispositivos já merecerem algum aggiornamento, inclusive em função da maior assimilação e aparelhamento da estrutura administrativa no que tange à disponibilização de informações de relevância pública).
Seguimos desde então nessa trajetória, inaugurada com a Constituição Federal de 1988, a qual foi erigida sobre os valores fundamentais da democracia, república e soberania popular.
Ganharam cada vez mais relevância – e cuidado -, tanto aos olhos do Legislador quanto do Judiciário e da cidadania os preceitos também basilares de satisfação (ainda que idealmente) das necessidades mínimas e fundamentais do cidadão; a realização de eleições livres, justas, universais e periódicas; a inexistência de hierarquia entre os poderes, em um arranjo fundamentado na lógica de freios e contrapesos, na atuação harmônica e coerente; a garantia à liberdade de expressão, de imprensa e acadêmica; os mecanismos seguros e confiáveis de controle da ação pública e accountability…
Os avanços, porém, vem sendo, com preocupante frequência, postos à prova, com ataques potencialmente comprometedores de todo o avanço conquistado desde a redemocratização.
Alterações legislativas/normativas vem enfraquecendo – por vezes mesmo neutralizando – os mecanismos de combate à corrupção e promoção da integridade pública; as ferramentas de participação e controle social vem sendo restringidos ou extirpados; as disputas públicas e rotineiras entre os poderes fundantes da nação trazem insegurança, e, pior, uma crise de confiança sem precedentes; regras vem sendo ignoradas pelo Executivo diuturnamente, sem qualquer resposta contundente e pronta; princípios constitucionais basilares, alçados inclusive à condição de cláusulas pétreas, relativizados ou esquecidos.
Causa intensa indignação – e preocupação – a ostensiva defesa da opacidade por órgãos públicos, em total desprezo à referida Lei de Acesso à Informação – e, em última análise, ao princípio constitucional da transparência -, em um processo de apropriação da coisa pública, de personificação da ação estatal e sobreposição de interesses particulares em detrimento da população (titular, lembre-se, da referida soberania).
Conforme determina expressamente a LAI, “cabe aos órgãos e entidades do poder público, observadas as normas e procedimentos específicos aplicáveis, assegurar a gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação”.
Ora, a Lei é bastante clara no que tange às exceções a essa regra: somente poderão ser submetidas a sigilo informações imprescindíveis à segurança da sociedade e do Estado.
Na hipótese específica das informações classificadas como ultrassecretas, o grau máximo legalmente previsto, o prazo de sigilo é de 25 anos.
As informações pessoais, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem de qualquer cidadão brasileiro, a seu turno, excepcionalmente, podem ter seu acesso restrito pelo período de cem anos.
Mas tal sigilo é expressamente proibido se voltado a “prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância.”
A artificial – e falaciosa – contraposição entre Lei de Acesso à Informação e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) não pode ser instrumentalizada com vistas a promover a opacidade e a cultura do segredo.
Conforme os princípios mais básicos de accountability, a ação pública deve ser sempre passível de controle pelas mais diversas instâncias (internas, externas e sociais), legítima, responsiva e responsável.
E, por óbvio, sem transparência, não há controle – e, sem controle, não há democracia.
Conforme precedente unanimemente prolatado pelo Supremo Tribunal Federal, “a prevalência do princípio da publicidade administrativa outra coisa não é senão um dos mais altaneiros modos de concretizar a República enquanto forma de governo. Se, por um lado, há um necessário modo republicano de administrar o Estado brasileiro, de outra parte é a cidadania mesma que tem o direito de ver o seu Estado republicanamente administrado.”
A solene ignorância da legislação e dos princípios estruturantes do nosso ordenamento representam inadmissível ruptura da ordem jurídica e institucional.
Insta-nos perguntar: a publicização dos sessenta e cinco documentos classificados como sigilosos pelo governo federal pelo período de cem anos traria, efetivamente, algum tipo de ameaça à segurança da sociedade, do Estado ou instituições brasileiros?
O conhecimento das visitas recebidas pela primeira dama, dos telegramas do Itamaraty, de carteiras de vacinação, de contratos de aquisição de vacinas, de sindicâncias envolvendo militares e encontros religiosos poderiam redundar em algum desses riscos? E a publicização dos caminhos efetivamente percorridos pelas receitas públicas, em um orçamento transparente, conforme constitucionalmente exigido?
A LAI contempla a possibilidade de classificação de documentos de possam eventualmente colocar em risco a segurança do presidente, vice e respectivos cônjuges e filhos independentemente de classificação – porém tão somente até o final do mandato…
Essa seria, assim, uma possibilidade tangível e compatível com as ‘explicações’ apresentadas pelo governo.
Agora, cem anos…
Estamos diante de uma realidade em que, tal como naquela trançada por de Garcia Marquez, o tempo é cíclico, sem delineação clara entre passado (autoritário) e presente (aspirante (?) a democracia?).
Vivemos em nossa Macondo tupiniquim, em que se travam, igualmente, guerras inúteis, por heróis quixotescos? Em que se dão golpes sem sentido, epidemias de esquecimento, ‘soluções’ fantásticas, que nos empurram cada vez mais longe da modernidade e da ciência?
Será que, tal como na inolvidável saga, teremos que esperar pelo final da chuva – e, passada a tormenta, esperar que Úrsulas de plantão, daqui a cem anos, estejam ainda no aguardo do desvelamento das tão ameaçadoras informações?
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