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    Lourival Sant'Anna
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    Lourival Sant'Anna

    Analista de Internacional. Fez reportagens em 80 países, incluindo 15 coberturas de conflitos armados, ao longo de mais de 30 anos de carreira. É mestre em jornalismo pela USP e autor de 4 livros

    Jimmy Carter pôs fim ao apoio americano à ditadura brasileira

    Ex-presidente americano considerava que os valores, e não só os interesses, deviam influir na política externa

    A eleição em 1976 de Jimmy Carter, que morreu no domingo, pôs fim ao apoio dos Estados Unidos às ditaduras sul-americanas, incluindo a do Brasil. No contexto da guerra fria e da disputa com a União Soviética por influência na América Latina, esse apoio aos militares foi adotado por antecessores de Carter, não por falta de preferência pela democracia, mas por receio da instalação de regimes comunistas na região.

    Nos anos anteriores, a política externa brasileira era dominada pela abordagem realista de Henry Kissinger. Secretário de Estado de Richard Nixon, ele foi mantido no cargo depois de sua renúncia, no escândalo de Watergate, por seu vice e sucessor, Gerald Ford. Em público, Kissinger defendia os direitos humanos, mas na prática, e nas conversas com os ditadores, como Ernesto Geisel do Brasil e Augusto Pinochet do Chile, o secretário americano se solidarizava com eles.

    Esse quadro mudou substancialmente com a eleição de Carter. Sua política externa foi formulada por seu conselheiro de Segurança Nacional, Zbigniew Brzezinski, que pertencia à corrente idealista das relações internacionais, segundo a qual interesses devem ser calibrados por valores. Carter pessoalmente também tinha essa visão da política, com forte ênfase nos direitos humanos, que lhe valeria em 2002 o Prêmio Nobel da Paz.

    Antes mesmo de Carter assumir o cargo, sua simples eleição serviu de senha para a diplomacia americana. Como relata em detalhes o jornalista Elio Gaspari no livro “A Ditadura Encurralada”, o cônsul americano em São Paulo, Frederic Chapin, que antes já enviava ao Departamento de Estado telegramas denunciando torturas, começou a atuar de forma mais ostensiva.

    Chapin passou a se reunir com o cardeal Paulo Evaristo Arns, que liderava os esforços da Igreja em favor dos direitos humanos, para compartilhar informações sobre as operações de repressão e torturas, às quais os diplomatas americanos tinham acesso.

    Carter defendeu na ONU moratória internacional da compra e venda de usinas nucleares e se opôs ao acesso de ditaduras a essa tecnologia, incluindo o acordo nuclear Brasil-Alemanha. O presidente americano enviou sua mulher, Rosalynn Carter, acompanhada de seu assessor de Segurança Nacional para a América Latina, Robert Pastor, para se reunir com Geisel.

    A primeira-dama explicou ao general brasileiro, segundo registros da reunião citados por Gaspari, que “a política externa americana deve representar o que há de melhor nos Estados Unidos e (…), por isso mesmo, não seria possível aceitar, fora de suas fronteiras, o que tampouco aprovaria internamente”.

    Até hoje muitos brasileiros nutrem ressentimentos em relação aos Estados Unidos pelo apoio ao golpe militar de 1964. O que essa história demonstra é que a política externa e de defesa de um país, embora expresse interesses mais ou menos permanentes, não pode ser encarada como algo fixo ou monolítico.

    O que na verdade é bastante óbvio: os Estados Unidos de Joe Biden são muito diferentes dos Estados Unidos de Donald Trump, assim como o Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva não é o mesmo de Jair Bolsonaro, em muitos aspectos, incluindo a atuação internacional.

    Mesmo com a guinada de Carter, o apoio inicial dos EUA à ditadura brasileira deixou marcas permanentes nas relações entre os dois países. Até hoje diplomatas americanos falam da dificuldade de ganhar a confiança de colegas brasileiros.

    Há uma diferença cultural que dificulta a superação de alguns mal-entendidos. Os diplomatas americanos partem do princípio de que, para conquistar a confiança de seus interlocutores, devem iniciar as conversas deixando claras suas intenções, objetivos e interesses. Para ouvidos latinos, algumas vezes essa abordagem pode soar como a tentativa de uma superpotência arrogante de impor sua vontade.

    Os americanos reconhecem, no entanto, a alta qualificação profissional do corpo diplomático brasileiro, que acaba tendo um papel mais proeminente em seu país do que seus colegas americanos. Afinal, os Estados Unidos adotam a prática de combinar embaixadores de carreira com nomeações políticas, o que é extremamente raro no Brasil.

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