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    Américo Martins
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    Américo Martins

    Especialista em jornalismo internacional e fascinado pelo mundo desde sempre, foi diretor da BBC de Londres e VP de Conteúdo da CNN; já visitou mais de 70 países

    Choque entre Carter e a ditadura militar levou ao pior momento das relações entre Brasil e EUA

    Presidente americano cobrou respeito aos direitos humanos, mas enfrentou resistência do governo Geisel, que abandonou acordo histórico entre os dois países

    Um duro embate entre o presidente Jimmy Carter (no cargo entre 1977 e 1981) e a ditadura militar marcou o pior momento das relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos.

    Eleito em 1976, o presidente democrata colocou o desarmamento nuclear e a defesa dos direitos humanos no centro de sua política externa. Ele morreu neste domingo (29) aos 100 anos.

    Os dois assuntos eram muito sensíveis para o então presidente Ernesto Geisel e os militares brasileiros, que negavam ao mundo os casos de abuso dos direitos humanos, tortura e censura da imprensa. O governo também queria usar a energia nuclear para fins civis e militares, especialmente para a propulsão de submarinos da Marinha do Brasil.

    Durante sua campanha eleitoral, Carter chegou a criticar o Brasil pelos casos de tortura e prisões arbitrárias que aconteciam no período.

    O embaixador Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente, lembra que acompanhou de perto a campanha americana daquele ano, quando servia como diplomata ainda em início de carreira no setor político da embaixada brasileira em Washington.

    “Ainda como candidato, Carter manifestou oposição ao acordo de cooperação nuclear do Brasil com a Alemanha (que levou à construção dos reatores das usinas nucleares em Angra dos Reis, no Rio de Janeiro). Ele achava que isso era um perigo para a proliferação de armas nucleares. Ele também criticou o problema dos direitos humanos do Brasil na época, depois das mortes do operário Manuel Fiel Filho e do jornalista Vladimir Herzog”, lembra o embaixador.

    Péssimo começo

    Ricupero diz que as coisas começaram mal entre os dois países antes mesmo da posse, já que o governo brasileiro chefiado pelo general Geisel havia decidido se aproximar de Gerald Ford, então presidente e candidato contra Carter.

    “O nosso chanceler da época, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, o Silveirinha, chegou a se reunir com o Henry Kissinger (então secretário de estado americano) às vésperas da eleição e o governo apostava tudo no Ford. Quando o Carter ganhou, gerou muita preocupação em Brasília e ficou claro que uma relação que parecia favorável ia acabar”, lembra o embaixador.

    Logo depois de assumir o posto, Carter decidiu mandar dois enviados para viagens importantes para as relações entre EUA e Brasil.

    Primeiro, enviou, sem o conhecimento do governo brasileiro, o seu vice-presidente, Walter Mondale, para a então Alemanha Ociental. O objetivo era pressionar o governo local a acabar com o acordo nuclear com o Brasil. A viagem não convenceu os alemães, que mantiveram o acordo, mas irritaram profundamente Geisel e os militares.

    Simultaneamente, o Departamento de Estado também enviou um relatório ao Congresso americano com críticas aos ataques contra os direitos humanos no Brasil.

    Dois meses depois da viagem de Mondale, Geisel decidiu dar fim ao Acordo de Assistência Militar entre o Brasil e os Estados Unidos, que estava em vigor desde 1952 e por meio do qual os americanos forneciam equipamentos militares às Forças Armadas brasileiras.

    Logo depois, o democrata pediu que sua mulher, Rosalynn Carter, viajasse ao Brasil para encontros com o presidente Geisel e outras autoridades da República. A intenção seria se aproximar do governo e explicar os motivos que levaram Carter e o Congresso americano da época a defender os direitos humanos e também suas preocupações nucleares.

    Encontro com missionários

    Mas a visita deixou ainda mais exposta à péssima relação entre os dois países. A primeira-dama resolveu convidar parlamentares da oposição para um jantar na embaixada, recebeu cartas e mensagens de dissidentes políticos denunciando casos de tortura e também se encontrou, em Recife, com dois missionários americanos que haviam sido presos e espancados pela polícia por motivos políticos.

    Na avaliação de Lucas Martins, professor de História dos Estados Unidos na Temple University, da Filadélfia, e autor da tese de mestrado “From 39th to Brasília: the relationship between President Carter and Brazil”, pela Universidade da Geórgia, essa sequência de eventos levou ao pior momento na relação entre os dois países.

    “Foi o pior momento da relação Brasil – Estados Unidos por conta dessa rusga que era muito explícita entre os dois países. Carter deixava claro que era contra a ditadura brasileira, sempre explicitou o que ele pensava. Por outro lado, a ditadura brasileira também jamais hesitou em mostrar seu posicionamento contra Carter. Os militares viam sua política como uma interferência nos assuntos internos do Brasil. Foi o momento mais delicado, até porque essa rusga não era restrita aos bastidores. Era visível para o público”, afirmou Martins.

    Carter ainda visitou o Brasil, em março de 1978. Ele foi mais cuidadoso do que a esposa e não se encontrou com dissidentes nem fez críticas explícitas ao governo brasileiro. Teve uma reunião, no entanto, com o então Cardeal de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, que nunca se furtou de denunciar os crimes da ditadura.

    Mas a viagem também não conseguiu reparar as relações entre os dois países, que continuaram muito ruins até pelo menos a eleição do presidente Ronald Reagan, em 1980.

    “O Carter praticamente se convidou para ir ao Brasil”, lembra Martins.

    Ele diz ainda que Carter tentou mudar a política em certo momento, tentando ser mais pragmático, até porque sofria pressão das empresas e bancos americanos que tinham muito interesse no Brasil.

    Política fracassada

    Mas Martins afirma que, em última análise, a política de Carter para o Brasil foi um fracasso.

    “Essa política foi um fracasso porque o Carter minou contatos e pontes com a ditadura e também com a oposição, que enxergava nesse movimento uma interferência nos assuntos brasileiros”, disse.

    O embaixador Ricupero, no entanto, vê a situação de outra forma.

    “O Carter deu um impulso aos que lutavam no Brasil contra a tortura e contra a ditadura. Ele ajudou. Não foi decisivo, mas a mudança de postura dos EUA ajudou a acelerar a transição no país. E você pode imaginar se fosse o contrário. Se o Brasil tivesse encontrado apoio do governo americano até mesmo para endurecer as ações contra a oposição. Teria sido mais difícil acabar o regime militar”, diz ele.

    Presidente subestimado

    Ricupero também elogia o democrata como um dos melhores presidentes dos Estados Unidos e também por suas ações em defesa da democracia ao redor do mundo através da Fundação Carter

    “Ele foi muito subestimado, mas conseguiu coisas notáveis, como os acordos de Camp David (que levaram ao tratado de paz entre Egito e Israel), por exemplo”, disse o embaixador.

    A professora Fernanda Magnotta, analista de Internacional da CNN, concorda que Carter conseguiu algumas conquistas históricas na sua política de relações exteriores.

    Uma das principais especialistas brasileiras em assuntos americanos, Magnotta afirma que Carter foi um presidente “emblemático, entre outras razões por não ter sido reeleito”.

    Mas ela lembra das conquistas do presidente. “Além dos acordos de Camp David, ele deu início ao processo de normalização diplomática com a China, que mudaria o mundo. E assinou acordos de desarmamento nuclear, firmados nesse período entre os Estados Unidos e a União Soviética”, diz Magnotta.

    No lado das dificuldades, além da relação com o Brasil, a professora lembra que Carter sofreu crise dos reféns na embaixada americana no Irã, logo depois da revolução islâmica liderada pelo Aiatolá Khomeini.

    “A gente também não pode ignorar que durante a gestão do Carter se deu um ‘aquecimento’ das disputas da Guerra Fria, com a invasão do Afeganistão pela União Soviética (em 1979)”, diz ela.

    Ricupero concorda que a crise no Irã “não deu sorte a Carter e acabou ajudando ao Reagan”.

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