Política fiscal curupira: olhos voltados para frente e pés apontados para trás
Mesmo economias avançadas têm dificuldade em lidar com regras fiscais pressionadas, e a nossa situação não é diferente
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Deixemos de lado, por um momento, o nervosismo das últimas semanas. A política fiscal, desde 2023, nunca esteve realmente confortável.
Uma combinação de fatores — juros elevados, baixo crescimento do PIB e resultados primários insuficientes — tem impulsionado o aumento da dívida pública no médio prazo. E isso, convém lembrar, antecede o ciclo de aperto monetário mais recente.
O governo eleito em 2022 alterou o nível e a velocidade dos gastos. A chamada PEC da Transição elevou o nível, enquanto a lei complementar do novo arcabouço fiscal ajustou a velocidade.
Essa velocidade, embora aquém do esperado para as receitas, poderia lentamente estabilizar a dívida no longo prazo. Mas há um problema: a mudança de regime fiscal foi acompanhada de uma aceleração ainda maior das despesas obrigatórias.
A agenda de receitas, foco do primeiro ano de governo, contribui para melhorar os resultados no curto prazo, mas pouco ajuda no controle do gasto. Na verdade, agrava o problema, já que parte das despesas é vinculada à arrecadação.
O resultado? O gasto total cresce, e 90% desse aumento é ainda mais acelerado. Em algum momento, a regra fiscal ficará pressionada. É uma fatalidade matemática cantada em verso e prosa desde o ano passado.
Mesmo economias avançadas têm dificuldade em lidar com regras fiscais pressionadas, e a nossa situação não é diferente.
Para completar, nosso histórico não é exatamente bom nesse aspecto. Agora mesmo, em pleno 2024, retiramos ad hoc cerca de R$ 40 bilhões da meta de resultado primário.
Não sem muito atraso, um pacote de contenção de gastos obrigatórios foi então anunciado. Tímido, ele não será suficiente para aliviar a pressão sobre o limite de despesas.
Há outro ponto crítico. A política fiscal, que o governo considera sustentável, é também um dos motores do crescimento econômico observado nos últimos dois anos. Isso não seria um problema, desde que esse crescimento fosse compatível com o nosso potencial.
Contudo, indicadores recentes — como a aceleração da inflação e o comportamento do mercado de trabalho — sugerem que já estamos acima desse potencial. Essa é inclusive a percepção do Banco Central.
Nessa perspectiva, a simples manutenção do atual arcabouço fiscal, eventualmente viabilizada pelo pacote aprovado nesta semana, pode não ser suficiente. Será necessário, de fato, desacelerar a política fiscal.
Esse é um dos recados, sempre muito polidos, do Banco Central em sua última ata, na qual manifesta preocupação com a “desarmonia” entre as políticas fiscal e monetária.
Em outras palavras: enquanto a política monetária segue contracionista, a política fiscal permanece expansionista.
E aqui surge outro complicador: a necessidade de conter o impulso fiscal, reconhecida pelos agentes econômicos, não encontra respaldo no governo. Os sinais contraditórios vindos do próprio Executivo agravam ainda mais a situação.
O exemplo mais evidente foi o anúncio, junto ao pacote de contenção de gastos, da renúncia de receita com o imposto de renda.
Embora essa perda possa, em tese, ser compensada pela arrecadação de impostos sobre os mais ricos — uma discussão bem-vinda, mas ainda incerta —, o impacto imediato da isenção sobre o consumo dificilmente será neutralizado.
Em português mais claro, é como se o governo tivesse levado uma torta red velvet para reunião dos Vigilantes do Peso. Não teria como terminar bem.
Esse tipo de ruído se soma às constantes falas de outros integrantes do governo arremessando toda e qualquer culpa pela situação atual na política monetária.
Portanto, enfrentamos uma combinação perigosa: desconfiança na condução da política fiscal, amplificada pela comunicação desalinhada do governo. Esse cenário poderia ser contornado com maior engajamento do próprio presidente da República, mas não é o que temos observado.
Enquanto isso, seguimos com nossa política fiscal curupira: olhos voltados para frente, mas pés apontados para trás.