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    Lourival Sant'Anna
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    Lourival Sant'Anna

    Analista de Internacional. Fez reportagens em 80 países, incluindo 15 coberturas de conflitos armados, ao longo de mais de 30 anos de carreira. É mestre em jornalismo pela USP e autor de 4 livros

    Crise completa um ano e fortalece radicais no Oriente Médio

    Enquanto a população sofre, ideologias ultranacionalistas e violentas se retroalimentam

    Um ano depois dos chocantes atentados do Hamas, as principais beneficiadas com a crise são as correntes radicais na Palestina, Israel, Irã e Líbano. Hamas e Hezbollah perdem como entidades políticas e militares, mas saem fortalecidos como ideologia. A maior perda recai sobre a população palestina, libanesa e israelense.

    As famílias de 1.200 israelenses mortos enfrentam o luto, enquanto as dos 100 reféns nas mãos do Hamas, vivem a aflição em relação ao que eles podem estar sofrendo e a revolta dirigida ao grupo terrorista e ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que não prioriza um acordo para sua libertação.

    Os moradores da Faixa de Gaza convivem com a dor da morte de mais de 40 mil pessoas, a destruição de suas casas e da infraestrutura do território, a escassez de alimentos, água, medicamentos e energia. No Líbano, mais de 1.400 mortos e os pesados bombardeios trazem de volta a recorrente realidade da guerra a um país já castigado pela disfuncionalidade de seu governo e economia.

    O Hamas, que desencadeou a atual crise, perdeu seu líder político, Ismail Haniyeh, assassinado por Israel em julho em Teerã, assim como um grande número de comandantes e combatentes. A Faixa de Gaza, governada pelo Hamas, transformou-se em escombros, assim como boa parte dos túneis e das instalações de foguetes que o grupo usava para atacar Israel.

    A milícia xiita Hezbollah, muito mais poderosa, está tendo um destino semelhante. O grupo intensificou os ataques a Israel a partir de 8 de outubro, quando teve início a resposta israelense contra o Hamas, e prometeu só por fim a essa escalada quando houvesse um cessar-fogo na Faixa de Gaza.

    Hassan Nasrallah, que liderava o movimento havia três décadas, foi morto em Beirute, juntamente com outros comandantes e combatentes. A cadeia de comando e a comunicação do grupo foram rompidas e o arsenal, significativamente degradado.

    Pela lógica interna do terrorismo e do Oriente Médio, as bases sociais e políticas desses dois grupos, respectivamente palestinos e libaneses xiitas, tendem a responsabilizar Israel pelo sofrimento causado pelas respostas israelenses a seus ataques, aspirar por vingança e reforçar o apoio a ambos.

    É nesse sentido que o Hamas e o Hezbollah perdem, de imediato, em capacidade militar e estrutura administrativa, mas ganham, no médio e longo prazos, do ponto de vista ideológico.

    Quando os ataques ocorreram, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, estava na defensiva. Os maiores protestos da história de Israel reuniam centenas de milhares de pessoas contra sua proposta de reforma do sistema judiciário, que retirava autonomia da Corte Suprema, na qual tramitam processos por corrupção e abuso de poder contra o primeiro-ministro.

    A falha de segurança que possibilitou que os ataques do Hamas ganhassem tamanha envergadura também colocou o governo na defensiva. O país, no entanto, uniu-se no esforço de tentar destruir o Hamas e restaurar a segurança.

    Entretanto, dos 251 reféns tomados pelo Hamas, apenas 105 foram libertados como resultado de trocas de prisioneiros em novembro; outros quatro, soltos pelos terroristas e oito, resgatados pelas Forças de Defesa de Israel (IDF). Pouco mais de 30 foram mortos e cerca de 100 ainda estão no cativeiro.

    O fracasso nas negociações não se deve apenas ao Hamas. Netanyahu autorizou em abril o assassinato de três filhos e quatro netos de Haniyeh no dia em que estavam previstas negociações no Catar.

    Depois de um aparente acordo, Israel apresentou uma nova exigência, de manter a ocupação do Corredor Filadélfia, que liga a Faixa de Gaza ao Egito, condição descartada pelo Hamas. Israel também quer poder de veto sobre a volta de integrantes do grupo para a Faixa de Gaza, depois de soltos na troca de reféns por prisioneiros, o que o Hamas rejeita.

    Na verdade, Netanyahu não tem condições políticas de fazer um acordo de cessar-fogo com o Hamas. Os ministros das Finanças, Bezalel Smotrich, e da Segurança, Itamar Ben Gvir, rejeitam qualquer acordo, e juntos eles comandam 13 deputados. A maioria do governo era de apenas 4 deputados e subiu agora para 8, com a adesão de mais um ministro ultranacionalista, Gideon Saar, que também se opõe a um acordo com o Hamas.

    A adesão de Saar coincidiu com a ofensiva de Netanyahu contra o Hezbollah, deixando clara a opção do primeiro-ministro pelo confronto militar em detrimento de uma solução negociada.

    A crise ampliou a atuação de um terceiro grupo armado que atua por procuração para o Irã. A milícia xiita Houthis, do Iêmen, antes circunscrevia seus ataques à Arábia Saudita, que apoia o governo iemenita. Com a guerra em Gaza, os Houthis passaram a disparar mísseis contra Israel e a sofrer represálias israelenses.

    No Irã, que patrocina o Hamas, o Hezbollah e os Houthis, a morte em maio do presidente ultranacionalista Ebrahim Raisi em um acidente de helicóptero abriu caminho para novas eleições. Com a permissão do líder espiritual, Ali Khamenei, que tem poder de veto sobre os candidatos, os iranianos elegeram um presidente moderado, para os padrões da teocracia islâmica: Massud Pezeshkian prometeu buscar um novo acordo nuclear com o Ocidente.

    O Irã vinha evitando um confronto direto com Israel. O ataque ao consulado iraniano em Damasco, que matou oficiais da Guarda Revolucionária Islâmica, em abril, e os assassinatos de Haniyeh e de Nasrallah, exigiram, no entanto, uma resposta, sob pena de perda de credibilidade da deterrência do Irã. O país respondeu com ataques com mísseis e drones contra Israel.

    A retaliação de Israel em abril, o disparo de dois mísseis contra uma base aérea em Isfahan, cidade que abriga instalações nucleares, foi calibrada para dar um recado, mas não desencadear uma guerra direta. Israel ainda não respondeu ao segundo ataque, que envolveu 180 mísseis balísticos, e não causaram danos maiores graças ao robusto sistema de defesa antiaéreo israelense.

    O tensionamento entre Irã e Israel coloca em risco as intenções do novo presidente de melhorar as relações com o Ocidente, e de reforçar as correntes ultranacionalistas no interior da teocracia islâmica.

    Como se vê, o ataque terrorista do Hamas teve o efeito de retroalimentar o radicalismo na Palestina, em Israel, no Irã e no Líbano. Ele recolocou em evidência o drama vivido pelos palestinos diante da ocupação militar de Israel e expansão da colonização judaica na Cisjordânia, assim como o cerco israelense à Faixa de Gaza. Mas não alterou a lógica da violência que impera na região. Ao contrário, reforçou essa lógica.

    O Oriente Médio precisaria de incentivos e pressões externas para ser arrancado dessa dinâmica. Mas na comunidade internacional não existe o consenso mínimo necessário para exercer essa influência positiva.

    O presidente Joe Biden tentou conter os instintos destrutivos de Netanyahu na Faixa de Gaza e no Líbano, mas não consegue ter uma ação mais assertiva por causa das sensibilidades da opinião pública americana, em ano de eleição.

    A China apoia o Irã no contexto de sua disputa com os Estados Unidos. A Rússia depende dos drones iranianos para levar adiante a guerra contra a Ucrânia.

    A Europa, submersa em suas divisões políticas internas, acerca do apoio à Ucrânia, da imigração e da inflação, e assistindo à ascensão do radicalismo no próprio continente, não consegue articular uma resposta coesa.

    Assim, o Oriente Médio está entregue à própria sorte. E aos seus instintos ancestrais.

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